Pequenas memórias de meu tio Ademar

03/09/2023 19h07 - Atualizado em 05/09/2023 13h01
Pequenas memórias de meu tio Ademar
Ademar e este cronista aos dois anos, nos jardins do Palácio do Catete - Foto: Arquivo pessoal


A memória é uma mistura mágica. Nela, construímos a nossa história, capturando fragmentos de alegrias, tristezas, ensinamentos e, sobretudo, amor. Certas pessoas imprimem sua marca nesse mosaico de forma tão profunda que se tornam eternas. Uma dessas pessoas, para mim, foi meu tio Ademar Wanderley, irmão da minha mãe Zenilda.

Num cantinho da memória ficará guardado muitos momentos que passei ao lado desse meu tio. Desde criança, como nessa foto antiga capturada nos jardins do Palácio do Catete no Rio de Janeiro, até os instantes de minha juventude repletos de ‘aconselhamentos nada pueris’. Ademar foi uma figura única.

Aos 12 anos, ele abriu as portas de seu Passat ‘equipado’ para me ensinar as primeiras noções sobre como dirigir. Aquelas eram épocas mais permissivas, talvez mais inocentes, em que um adolescente ao volante não era ainda um tabu irremediável. Posteriormente, suas lições se estenderam para um Fiat 147, também dele,  como um tesouro na porta da casa do meu pai e que eu ‘comandava’ às escondidas|'. Através dessas jornadas sobre quatro rodas, Ademar não apenas me ensinou a dirigir, mas também transmitiu metáforas de vida: o valor de responsabilidade, o sabor da liberdade e o significado de uma verdadeira aventura.

Morou um tempo em Feira de Santana e de lá trouxe as músicas baianas, que ele "introduziu" em Palmeira dos Índios antes de estourar no país o axé-music. Era capaz de ficar vidrado por vários minutos, defronte a TV, rindo com o desenho da pantera cor-de-rosa, da qual eu tinha medo quando criança.

Lembro vividamente de uma viagem a Manaus, em 1992, quando ele decidiu que eu seria seu companheiro de exploração. Foi ali que conheci a beleza da capital nortista, com seu magnífico Teatro Amazonas, o intrigante Museu do Índio e as delícias da gastronomia local — como o tucunaré e o então desconhecido suco de cupuaçu. Essa viagem não foi apenas um passeio turístico; foi uma verdadeira aula de cultura e história, proporcionada por uma das melhores companhias.

Quando, aos 17 anos, fui aprovado no vestibular da UFAL, foi meu tio quem inaugurou o meu "rito de passagem" para a vida universitária, cortando meu cabelo num trote que era mais um gesto simbólico de amor do que qualquer outra coisa.

Momentos que não fogem da memória.

Ademar partiu precocemente na quinta-feira, 31 de agosto.

E só quem o conheceu sabe o valor que tinha. Defeitos, quem não os tem? Mas todos aqueles que o conheceram verdadeiramente exaltaram seus traços fraternais.

São tantas lembranças que não cabem aqui, memórias de um tempo venturoso, com pouco espaço para cobranças, tristezas e decepções. 

Em seu velório, decidi não adentrar o cemitério São Gonçalo, nem aproximar-me do ataúde. Guardei, você, meu tio, na lembrança desta imagem de um tempo feliz.

Ademar foi mais do que um tio. Ele foi um amigo, daqueles que você conta nos dedos e que vive agora em um lugar especial da minha memória. E é ali que ele permanecerá: eterno e imortalizado nos momentos felizes que compartilhamos. Certamente, ele é uma das razões pelas quais eu acredito que a amizade e as memórias são as verdadeiras heranças que nos deixam os que partem antes de nós.