A última morada: dia de finados e a nossa relação com os que se foram

01/11/2023 22h10 - Atualizado em 01/11/2023 22h10
A última morada: dia de finados e a nossa relação com os que se foram



Neste dia de Finados, as flores se multiplicam sobre os túmulos como se quisessem preencher o vazio que os mortos deixam em nós. É o dia em que lembramos daqueles que não estão mais aqui, mas cujas memórias insistem em habitar nossos pensamentos e emoções.

Mas, por que a última morada desses entes queridos frequentemente é relegada ao abandono?

Graciliano Ramos, ilustre escritor e ex-prefeito de nossa Palmeira dos Índios, uma vez disse: "Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os únicos munícipes que não reclamam".

Essa frase lapidar nos faz refletir sobre como os vivos, sempre imersos em suas próprias urgências, frequentemente deixam os mortos e suas moradas em segundo plano.

De 1930, quando Graciliano escreveu essa frase em um dos seus famosos relatórios até hoje, o cemitério público de Palmeira dos Índios, na Rua Pedro Soares, sofreu duas intervenções com pequenas ampliações e só. De lá pra cá o cemitério palmeirense guarda as mesmas características e sinais de abandono.

É interessante notar como, às vésperas do Dia de Finados, muitos cemitérios públicos recebem uma espécie de "maquiagem" urbana. Uma mão de cal aqui, um ajuste na cerca ali, um remendo no muro, talvez até uma nova placa indicativa. São retoques que transmitem a impressão de cuidado e atenção, mas que frequentemente servem apenas para mascarar um abandono mais profundo desses espaços.

Essas intervenções pontuais - quase teatrais - revelam uma dicotomia perturbadora: por que esperar uma data específica para oferecer um mínimo de dignidade a um local que deveria ser sagrado todos os dias do ano? Esse comportamento sazonal de zelo pelos cemitérios revela não apenas uma negligência administrativa, mas também uma falha coletiva em nossa relação com a memória e o luto. Torna-se evidente que a atenção dada a esses locais é mais uma questão de aparência do que de respeito genuíno pelos que já se foram e por suas famílias.

É preciso ir além do simbolismo das flores e velas que enfeitam os túmulos uma vez por ano. Os cemitérios, como espaços públicos e coletivos, demandam um cuidado contínuo que honre a memória dos que ali repousam. Não são apenas os mortos que merecem esse respeito, mas também os vivos que encontram nos cemitérios um lugar para conectar-se com seus entes queridos, para refletir sobre a efemeridade da vida e, talvez, encontrar algum grau de consolo para suas perdas.

Então, após o Dia de Finados, quando as flores começarem a murchar e as velas se extinguirem, que não permitamos que o mesmo aconteça com nosso compromisso em manter digna a última morada dos que partiram. O abandono de nossos cemitérios é também um reflexo de como tratamos nossa própria história e memória. E isso, sem dúvida, merece mais do que uma mão de cal ocasional.

A cultura ocidental muitas vezes evita falar sobre a morte, como se a ignorássemos o suficiente, ela nos pouparia. Mas, na realidade, a morte é a única certeza que temos na vida. Então, por que não tratamos os cemitérios — os locais onde descansam nossos pais, avós, amigos e ancestrais — com o respeito e a dignidade que eles merecem? Talvez porque seja mais fácil lidar com a ausência quando não precisamos encará-la. Esquecemos que os cemitérios também são espaços de memória, onde o passado pode ser reverenciado e as histórias podem ser contadas novamente, mesmo que apenas em nossas mentes.

Então, neste Dia de Finados, ao colocarmos flores e velas nos túmulos, que possamos também refletir sobre a importância de manter vivas as memórias daqueles que se foram. Afinal, eles são parte de quem somos e das histórias que contaremos.

E se os mortos não reclamam, como bem observou Graciliano Ramos, cabe a nós, os vivos, não esquecer que um dia também seremos história e memória para alguém. Que nossos cemitérios não sejam apenas campos de pedras e nomes esquecidos, mas jardins onde as memórias florescem, alimentadas pelo amor e pelo respeito de quem ainda caminha sobre a terra.

Portanto, ao voltarmos para nossas casas após as visitas aos cemitérios, que levemos conosco não apenas a saudade, mas também o compromisso de cuidar melhor da última morada daqueles que amamos. A morte pode nos levar fisicamente, mas as memórias e os legados permanecem. E isso é algo que merece ser honrado, não apenas no Dia de Finados, mas em todos os dias de nossa vida.