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Monstro-hidra hecatônquiro e centopeico
O brasileiro tem mil motivos para não usar o transporte público, o hospital público sem médico, a escola pública etc. Além disso, tem que torcer muito para não cair nas malhas da nossa máquina punitiva. Nos países de capitalismo evoluído, distributivo e altamente civilizado (Noruega, Dinamarca, Coreia do Sul, Holanda, Bélgica, Áustria, Finlândia, Islândia etc.) o monstro-hidra (de muitas cabeças) hecatônquiro (cem mãos) e centopeico (cem pés) do poder punitivo já foi razoavelmente domesticado (o que não significa que ele não possa reaparecer e mostrar suas garras em qualquer momento, posto que nunca morreu).
Nos países mais atrasados ou mais desiguais (comunistas, como a Coreia do Norte e Cuba ou de capitalismo selvagem, como o Brasil, ou de capitalismo exageradamente desigual, como os EUA), o monstro do poder punitivo atua com controles frouxos, tendo pouca ou nenhuma aderência ao Estado de direito (veja, por exemplo, a situação deplorável dos nossos presídios descontrolados, que se transformaram, com apoio massivo da mídia e da população, em pleno Estado democrático de direito, em campos de concentração e de extermínio).
Torça para você ou um parente nunca caia nesse fosso de crueldade. Milhares de situações evidenciam (nos países atrasados ou extremamente injustos) que o poder punitivo do Estado está completamente deslegitimado porque se transformou em uma máquina de torturar, triturar, extorquir e exterminar. Na delegacia de polícia de Macau (RN), vários presos (incluindo uma grávida) estão amarrados com cordas e mantidos nos seus corredores (Estadão 12/3/14, p. A13). Em Codó (MA), uma mulher ficou algemada por uma semana ao cano de uma cadeira no corredor de uma delegacia, por falta de cela feminina (Folha 28/2/14, p. C6). No mutirão de 2010 (do CNJ), no Acre, foram encontrados presos de regime aberto recolhidos no regime fechado; 241 presos com direito ao regime semiaberto também estavam no fechado; os processos dos presos provisórios não contavam com nenhum controle; as prisões em flagrante eram convertidas automaticamente em preventiva, sem controle do juiz (violação à Res. 66/2009, do CNJ); os juízes somente analisam a legalidade da prisão, não a sua necessidade ou utilidade.
O CNJ ainda constatou que falta o controle da prescrição (muitos réus com penas prescritas continuavam presos – sete foram liberados por esse motivo); razão insignificante leva à regressão de regime, que é feita muitas vezes sem o direito de defesa; quando um agente fechava a porta de uma cela esmagou o dedo de um preso, que só foi atendido no dia seguinte (e ainda foi punido por esse motivo por falta grave!); do total de 3.093 presos examinados, 453 receberam algum tipo de benefício ou foram liberados, porque injustamente presos. Muitos estavam com penas vencidas.
Por que o monstro do punitivismo descontrolado (e tendencialmente descontrolável), apesar de ser um “monstro”, continua com todo seu vigor? Porque passou a ser visto como um “bem” para a sociedade, que se anestesiou diante das atrocidades da máquina de torturar, triturar, extorquir e exterminar, em que se converteu (em alguns países de forma eloquente, em outros nem tanto) o monstro do poder punitivo. Todo “bem” deve ser aceito, não contestado. Mas torça para você não precisar desse “bem”.
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