Geral

Como os deputados vassalos tratam um suserano (Odebrecht)

10/09/2015

Cada vez mais o Brasil, com seus inconclusos progressos, vai mostrando sua verdadeira cara. Seguindo a visão circular da história, não há como não concluir que ele é uma das mais acabadas versões do velho feudalismo europeu. A oitiva de Marcelo Odebrecht pelos deputados da CPI da Petrobras, no dia 1/9/15 (a grande maioria integrante da mafiocracia financiada pelos donos do poder, incluindo, obviamente, o suserano citado), constitui um dos sinais mais evidentes e deprimentes de que o Brasil efetivamente vive, sem repetiripsis litteris (evidentemente), a velha etapa feudalista. Bernardo Mello Franco (Folha 2/9/15: A2) e o Estadão (3/9/15: A3) foram direto ao ponto. A leitura dos trechos que seguem é absolutamente esclarecedora:

“Marcelo foi cortejado por um diligente grupo de súditos: os deputados da CPI da Petrobras; os inquisidores pareciam concorrer para ver quem elogiava mais o empresário, que responde a ação penal por corrupção, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa; “Senhor Marcelo, é a primeira vez que tenho a oportunidade de estar pessoalmente no mesmo ambiente que o senhor”, desmanchou-se Altineu Côrtes (PR-RJ); seus empregados sentem “profundo orgulho” do Senhor; só faltou pedir autógrafo; Valmir Prascidelli (PT-SP) disse: “O sr. acha adequada e correta a sua prisão, considerando que sempre se colocou à disposição da Justiça?” Odebrecht retribuiu, sensibilizado: “Agradeço muito as perguntas que o sr. está fazendo, porque elas seriam as minhas respostas”; Delegado Waldir (PSDB-GO), que na véspera chamara José Dirceu de “ladrão”, parecia outra pessoa. “Parabéns, eu também me orgulho muito do meu pai”, disse, quando o empreiteiro citou o patriarca Emilio; outro tucano, Bruno Covas (PSDB-SP), se mostrou compreensivo quando o réu se recusou a responder perguntas: “Não precisa pedir desculpas, até porque é um direito seu”; Carlos Andrade (PHS-RR) quis saber se o executivo continua a defender o financiamento privado de campanhas: “Sou a favor, sempre fui”; os súditos respiraram aliviados”. Como suserano, o empresário sabia que não seria incomodado pelos deputados (Estadão); Luiz Sérgio (PT-RJ) dirigiu-se ao senhor neofeudal como “um jovem executivo de uma das mais importantes empresas brasileiras”, que deve sim ser beneficiada com o acordo de leniência; sorridente, o suserano disse que se uma filha sua fizesse algo errado e a outra dedurasse, ele brigaria com quem delatou, não com quem perpetrou o malfeito; esse é seu “valor moral” – “uma moral mais apropriada a uma organização mafiosa, em que o abominável delinquente é aquele que delata o crime, e não aquele que o comete”; a prisão decorre não de fatos, sim, de “publicidade opressiva”; “quando há um problema na Odebrechet, quem perde é a sociedade brasileira”.

A Europa medieval, depois da queda do Império Romano, vivenciou (por cerca de mil anos) o sistema do feudalismo. O poder político estava pulverizado nas mãos dos senhores feudais, que eram suseranos (ou seja: os donos absolutos dos seus feudos, mas não do comando geral do poder, que foi eclesiástico durante longo período); tinham total domínio dos seus vassalos e dos seus territórios. Os senhores feudais (donos de terras) mantinham entre si relações hierárquicas de nobreza (reis, duques, marqueses, condes) e de clero (papa, bispos, abades) (veja Sérgio Resende de Barros).

Todos os príncipes eram entre si suseranos (um acima do outro) e vassalos (um abaixo do outro), “com base em juramentos de lealdade, mediante os quais formavam uma pirâmide hierárquica de poder e dignidade; cada príncipe governava seu principado por efeito de um domínio político de base territorial; o domínio da terra implicava o domínio político (e jurídico)”. Com o surgimento dos reis (acordo entre senhores feudais e o papa), estes exerciam o governo em nome de Deus, com poderes soberanos ilimitados. O sol e a monarquia se mesclaram, em plena Idade Moderna, sendo disso símbolo máximo Luís XIV, a quem é atribuída a famosa frase “L’État c’est moi” (o Estado sou eu). O feudalismo foi uma nova versão da Idade Antiga, que se caracterizava pelo regime patriarcal e escravagista.

Os atuais senhores neofeudais no Brasil (os donos do poder econômico, financeiro e político) são sucessores de outros que os precederam: donatários das capitanias hereditárias, senhores de engenho, fazendeiros e “coronéis”. Todos são a soma atualizada de tudo que as civilizações anteriores vivenciaram (consoante a ótica circular da história): patriarcalismo, escravagismo, personalismo, poder hierarquizado piramidal, ignorantismo da população dominada, misticismo metafísico e extrativismo. A tudo isso, no Brasil, agregaram o patrimonialismo (confusão do patrimônio privado com o patrimônio do Estado) assim como a formação de um caráter frouxo (flexível, lusco-fusco), ou seja, sem bases ético-morais fortes (daí a fortaleza do “jeitinho” brasileiro).

O  Brasil, com toda essa cultura personalista, patriarcalista, escravagista, ignorantista, extrativista, parasitária, patrimonialista, metafísica e hierarquizada (aristocrática), deu no que deu: progresos e arcaísmos, civilização e barbárie, esta escancarada nas desigualdades brutais, que são, por sua vez, as matrizes da nossa catótica desorganização social assim como fontes estimuladoras da violência tribalista individual e coletiva. Em números: 12º mais violento do planeta, 19 das 50 cidades mais homicidas do mundo estão aqui, somos campeão mundial em agressões contra os professores, 8º país do mundo em analfabetismo absoluto (mais de 13 milhões de pessoas, acima de 15 anos), escolarização média de 7,2 anos (igual a Zimbábue), um dos países menos competitivos da globalização etc. Enquanto não fizermos uma faxina geral nos partidos e nos políticos que praticam a velha política clientelista, nepotista, fisiologista e familista continuaremos a dar um passo para frente e dois para trás.