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Escritor e jornalista Bernardo Carneiro fala da convivência com Nise da Silveira em livro inspirado na psiquiatra
O jornalista e escritor Bernardo Carneiro Horta relatou ao jornal Tribuna do Sertão sua convivência de 12 anos com a psiquiatra alagoana Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente.
O autor fala da revolução que ela realizou a partir de sua obra e do “amor aos loucos”, que fez Nise combater eletrochoques e tratados de psiquiatria.
“Na verdade, seu amor aos loucos era um profundo amor pelos seres humanos e pelo Brasil. Ela foi uma mulher extraordinária.
O que vejo, no colapso e na desumanidade deste início de século XXI, é que falta Nise no coração brasileiro”. A partir da obra de Bernardo, também foi produzido o filme “Nise-Coração da Loucura”, uma cinebiografia da doutora Nise, devido à sua contribuição para a psiquiatria mundial. O filme tem pré-estreia no Festival Nacional de Cinema do Rio de Janeiro na terça-feira (6), e o lançamento nacional está previsto para março de 2016.
Tribuna do Sertão (T.S.) – Como você conheceu Nise da Silveira?
Bernardo Carneiro (B.C.) – A força do audiovisual me aproximou de Nise da Silveira. Era o ano de 1987, eu e amigos universitários resolvemos fazer um trabalho que priorizasse a imagem. Então, após ler uma matéria sobre o Museu de Imagens do Inconsciente e assistir ao filme Imagens do Inconsciente, com roteiro da dra. Nise e direção de Leon Hirszmam, decidimos ir ao Centro Psiquiátrico em que se localiza o Museu. Passei dois meses estagiando no hospício, uma das experiências mais fortes, constrangedoras e significativas da minha vida. Ali, em vez de darmos ouvidos aos psicólogos, psiquiatras e enfermeiros, decidimos ouvir os loucos. Assim, ficou clara a presença de elementos espirituais e religiosos na loucura. Para nós, tornou-se evidente que o louco identificava-se, sobretudo, com a figura de Jesus Cristo. Decidimos adaptar a via-crucis do Evangelho segundo São João para dentro do hospício – o louco personificava Jesus, e a loucura era a própria crucificação. Quando o trabalho ficou pronto, Nise disse: “Mandem esses meninos virem aqui em casa – eu quero ver que história é esta de adaptação do Evangelho no Museu…” Desta forma, pela criação de um trabalho diferente, ganhamos a chance de conhecê-la.
T.S. – Quando você estagiou no Centro Psiquiátrico Pedro II e no Museu de Imagens do Inconsciente, como foi se aproximar dos portadores de distúrbios mentais?
B.C – Foi instigante e, ao mesmo tempo, assustador. Naquela fase, havia cerca de 700 internos no Centro Psiquiátrico Pedro II. Alguns ressocializados, em recuperação, mas outros em graves surtos, sem cuidados, sem banho, paralisados ou muito agitados. Eu e meus colegas estudantes tínhamos cerca de 25 anos de idade. Para nós, foi situação comovente, mas também entristecedora. O Museu de Imagens do Inconsciente é uma das instituições que funcionam no Centro Psiquiátrico. Há outros hospitais, centros de atendimento. Quando estávamos nos ateliers de pintura e modelagem do Museu, com os esquizofrênicos que ali atuavam, era agradável e revelador. No entanto, quando circulávamos pelos outros hospitais, assistíamos a situações de desequilíbrio, pobreza, solidão e até violência. Em 1987, doutora Nise já não trabalhava lá, estava aposentada. De toda forma, para mim ficou claro a importância do trabalho que aquela mulher havia realizado num hospício miserável, do terceiro mundo.

ESCRITOR Bernardo Carneiro vai lançar o livro “Nise Arqueóloga dos Mares” no próximo dia 9, em Brasília
T.S – Você conviveu com Nise de 1987 a 1999, no Grupo de Estudos C.G.Jung, fundado por ela e em funcionamento até hoje. Lendo seu livro, Nise, Arqueóloga dos Mares, a impressão é de que ela propunha estudos mais sobre literatura do que psicologia.
B.C. – Sim, exatamente isto. As razões são reveladoras das experiências de Nise. Ela era uma figura humana diferenciada: criança-prodígio, jovem hipercapacitada, mulher e intelectual genial. Aos oito anos, recitava o evangelho em francês. Aos dez, vivia na biblioteca do pai; ainda jovem, lia obras do filósofo Baruch Spinoza. Aos 15, entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia, formou-se e mudou-se para o Rio de Janeiro. Na antiga capital da república, ela conheceu Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Murilo Mendes, Di Cavalcanti, Luis Carlos Prestes, Graciliano Ramos. Fez parte de uma geração que tentou reconstruir o Brasil. Quando Nise se tornou psiquiatra, em 1930, passou a estudar tal matéria e a morar dentro do Hospício da Praia Vermelha, na Urca. Ali, ela viu que os tratados de psiquiatria tinham pouco a ver com os loucos – e encontrou na literatura espaço muito mais rico para compreender a loucura. Quando idosa, sempre ousada e revolucionária, costumava dizer a estudantes: “Rasguem os tratados de psicologia e psiquiatria. Quem quiser compreender o que se passa com os loucos, deve ler William Shakespeare e Machado de Assis. Não houve, no mundo, melhores psicólogos do que eles.” Nise trocou a frieza dos relatórios burocráticos pela mais fina literatura e deu partida em sua nova visão da esquizofrenia, repleta de inteligência e humanismo. Mudou o perfil da psiquiatria no Brasil e em outros países.
T.S. – A biografia escrita por você relata que Nise ia, todo dia, trabalhar no Centro Psiquiátrico Pedro II, entre as décadas de 1940 e 1980. Ela se privou de parte de sua vida pessoal e intelectual por causa do que ela denominava “amor aos loucos”?
B.C. – Ela doou sua vida àqueles que sofrem a condição da loucura, da segregação, do preconceito, da solidão e do estigma da doença mental. Quando Nise trabalhou no hospício de Engenho de Dentro, aquele era um bairro distante, desértico. Era mulher, médica em meio a homens machistas. Para trabalhar ali, atuou com coragem digna dos transformadores. Quanto à sua obstinação, isto teve origem em sua formação. Quando pequena, seus pais eram católicos e socialistas. Sua infância balizou-se entre arte, engajamento político e combates violentos. Quando jovem, sua personalidade solidificou-se num caldo de cultura do período entre-guerras, da Coluna Prestes e do Modernismo. Foi acusada de subversiva e presa pela ditadura de Getúlio Vargas. Esteve na mesma cela de Olga Benário, na mesma prisão onde estavam Graciliano Ramos e Di Cavalcanti. O encontro da doutora Nise com Graciliano, na cadeia, é histórico e está narrado num dos livros do escritor: “Memórias do Cárcere”. A fase da prisão a traumatizou e embasou sua forte personalidade: a moça formada no caldeirão do cristianismo e do socialismo foi feita para o combate. Isto fazia parte de sua personalidade, e assim foi Nise até o último ano de vida: aliada dos mais fracos, ousada em busca de soluções, feroz no que se referia à involução e maldade. Obstinada. Na verdade, seu amor aos loucos era um profundo amor pelos seres humanos e pelo Brasil. Ela foi um gênio, é considerada um dos cem mais importantes brasileiros do século XX. O que vejo, no colapso e na desumanidade deste início de século XXI, é que falta Nise no coração brasileiro.
T.S.- A resistência de Nise à uma biografia fez você optar por um painel de relatos e fatos dispersos ao longo da vida dela. Esse formato foi suficiente para revelar as contradições dessa personalidade?
B.C. – Foi mais que suficiente. Confirmou que Nise da Silveira era genial. Ao elaborar um livro biográfico sobre a doutora, como ela própria sugeriu, evidenciou-se de forma contundente sua personalidade. A biografia esclarece suas posições, ressalta características, torna mais clara sua trajetória individual. Não conheci outra pessoa tão repleta de energia e intensidade, de coerência e paixão pela vida. Uma mulher apaixonante. Destas criaturas que surgem a cada 50 ou cem anos.
T.S. – Você preferiu publicar seu livro de forma independente. Por quê?
B.C.- Decidi publicar a primeira edição eu mesmo pois desejava liberdade de escrever o livro como eu e outros colaboradores de Nise desejávamos. Deu certo e a obra foi bem recebida pela família dela, amigos, admiradores. Agora, em 2015, já foram publicadas e distribuídas cinco edições da obra, com cerca de oito mil livros. Para o mercado editorial brasileiro, é expressivo.

EM ARQUEÓLOGA DOS MARES, Bernardo Carneiro apresenta um painel de acontecimentos marcantes da vida de Nise da Silveira. Da infância em Alagoas do início do século XX., ao encontro com o analista suíço Carl Gustav Jung.
T.S- Depois da morte de Nise, seu método tem sido difundido?
B.C. – Após seu falecimento, sua vida e obra se fortalecem de maneira surpreendente. Mais que o sucesso de um método, o que vemos hoje é a medicina brasileira e o sistema de saúde repensando-se a partir das ideias e realizações dela. A doutora mudou os rumos da psiquiatria e da psicologia no Brasil e em outros países. É figura internacional, nome de enfermaria na França, clínica na Itália, grupo de estudos em Portugal… Ouso dizer: Freud, Jung, Reich e Nise da Silveira mudaram os rumos da consciência de nossa cultura, no século XX. Agora, no XXI, estamos digerindo tal revolução. Nise fundou o Grupo de Estudos C.G.Jung, o Museu de Imagens do Inconsciente, a Casa das Palmeiras e a Sociedade de Amigos do Museu. Todas estas instituições continuam funcionando até hoje.
T.S. – Nise dizia que a esquizofrenia equivalia aos “inumeráveis estados do ser” e que mesmo os mais estranhos delírios têm sentido. A médica não gostava dos normais, dizia que não desejava ser 100% ajuizada. Até que ponto isso era verdade?
B.C. – A luta da senhora das imagens era, sobretudo, contra o preconceito, o desamor e a crueldade. Então, ela decidiu substituir a palavra esquizofrenia (que significa cisão da mente) pelo termo “os inumeráveis estados do ser”. Nise queria mostrar que o que mata é a indiferença, o preconceito. Citando a mestra: “A loucura está profundamente ligada ao desamor – portanto, é preciso amor para salvar alguém da loucura.” Ao fim da vida, a brasileira abriu mão do título de “doutora”, dispensou indicações para o Prêmio Nobel e a Academia Brasileira de Letras. Despojou-se ainda mais e preferiu estar com os artistas, os loucos, os livros e os animais. Ali, encontrou-se e obteve paz de espírito. Dispensou a arrogância dos abastados e a burrice dos normais. À sua maneira, transferiu-se para os inumeráveis estados do ser, incluindo lucidez, humanismo e liberdade para altos voos. Com 94 anos de vida, ela depurou-se ao máximo que pode – assistir a Nise viver era lição de vida. Tive o privilégio de conviver com ela ao longo de 12 anos. Tenho-a como amiga, mestra e gênio.
Livros e filmes
T.S. – Nise da Silveira faleceu há 16 anos. Há constantemente homenagens, livros, filmes, peças teatrais e outros eventos referentes à ela. Você está envolvido em algumas destas obras?
B.C.- Meu envolvimento total é com o livro Nise, Arqueóloga dos Mares. Eu imaginava que a obra, ao ser lançada em outubro de 2008, seria bem recebida. No entanto, houve fenômeno que comprovou que não havia um livro, em linguagem jornalística, sobre Nise, que reunisse trechos de vida e obra para o grande público. Em 40 dias, a primeira edição de meu livro esgotou – em 50 dias, a Editora Aeroplano comprou os direitos de publicação e já havia uma segunda edição nas livrarias de todo o Brasil. A imprensa e os intelectuais deram grande espaço, a repercussão foi marcante. É meu primeiro livro e tenho a chance privilegiada de homenagear Nise da Silveira. A grande novidade é a estreia, no dia seis de outubro, no Festival de Cinema do Rio, do filme Nise – O coração da loucura, cujo roteiro tem base em meu livro. Pude acompanhar a filmagem de algumas cenas, um processo intenso e muito emocionante. A direção é de Roberto Berliner e Gloria Pires interpreta o papel de Nise. O filme está belíssimo, uma obra-prima. O projeto do longa-metragem teve início no ano 2000, foi longo e enriquecedor. Participei como assistente de roteiro, gerando ideias e informações. Em 2012 a obra começou a ser rodada. Além de Gloria Pires, o elenco conta com grandes atores, como Augusto Madeira, Fernando Eiras, Claudio Jaborandy, Fabricio Boliveira e Georgiana Goes. A estreia nacional está prevista para março do próximo ano.O filme conta que ao sair da prisão, a doutora Nise da Silveira volta aos trabalhos num hospital psiquiátrico no subúrbio do Rio de Janeiro e se recusa a empregar o eletrochoque e a lobotomia no tratamento dos esquizofrênicos. Isolada pelos médicos, resta a ela assumir o abandonado Setor de Terapia Ocupacional, onde dá início à uma revolução regida por amor, arte e loucura.
T.S.- Bernardo, quais são os seus novos projetos?
B.C.- Entre eles, lançar a biografia em Maceió e em outras cidades alagoanas. É um sonho meu, espero realizá-lo. No mais, nos últimos anos publiquei outros dois livros: uma biografia sobre a educadora Anália Franco e um livro de contos. Estou “imaginando” a próxima obra. A carreira de escritor é uma aventura desafiadora e, possivelmente, esta é sua melhor parte.
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