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Quase normal
Em geral, as obras humanas trazem a marca de uma cultura, são vinculadas a um lugar e a um tempo. Há algo que produzimos, entretanto, que está à parte disso, é universal e eterno. A melhor arte é assim. Algumas obras, parece, estão além da História. Talvez por ser causada pelos labirintos do cérebro, lá onde o humano esconde o que não quer que o humano veja, a produção artística não tenha compromisso com as circunstâncias. Quando a arte é arte como tal, arte em estado de pura arte, seja lá quem a crie, seja lá de onde ou de quando venha, é compreendida para sempre e em todo lugar.
A mais frágil imagem gravada há milênios nas paredes de uma caverna segue maravilhando. Há músicas que são reconhecidas como proclamações da civilização. Em 1972, o astrofísico Carl Sagan idealizou as placas Pioneer. Elas portam, além de imagens de coisas comuns da Terra, sons e músicas que nos conduzem pelo espaço sideral, ao encontro de tudo ou de nada, para eventual apresentação da humanidade. Há canções de povos indígenas latino-americanos, hits de Chuck Berry, cantos gregorianos e composições eruditas de Beethoven, Bach e Stravinsky (https://bityli.com/7M3yo). Contando que tanja inteligências sensíveis, esperamos que os improváveis alienígenas entendam que se produzimos tais coisas e tais sons é porque somos civilizados.
A arte está acima das ideologias, e talvez seja uma elevada linguagem humana para falar, senão com extraterrestres, pelo menos com a humanidade. É isso que sinto quando vou ao teatro. Lembro-me de Quase Normal, 2013, (https://bityli.com/UTgz0), vencedora do Pulitzer de 2010. Em um espetáculo, “a palavra é matéria-prima fundamental do fazer artístico, a base da representação. [Na peça] a força da palavra não é menor” (Tadeu Aguiar, diretor). Nessa apresentação (quase toda cantada), eu gostei das palavras bem colocadas, das expressões convincentes, da música contagiante. Quer dizer: gostei da arte, dos recursos usados, da capacidade de dizer tanto sobre o humano – qualquer humano – em duas horas.
O mote do musical é uma família que lidava com o transtorno bipolar de sua mãe (eu discordo do diagnóstico). Em torno do sofrimento dessa mulher, alguns males da vida e do conviver. Recordo certas passagens que me falaram dos desconfortos e das recorrentes buscas humanas. Normalidade: “Você quer uma vida normal. Você sabe o que é isso?” Sofrimento: “O problemático faz reféns; o problemático teme fazer reféns”. Convivência: “Você tem que levar a sua vida, apesar e por causa da devoção do outro”. Os anos: “Acumulam as tuas esperanças e os teus rancores”. Contraditória e insatisfeita satisfação: “Amor inclui dor”.
O marido era um obstinado por felicidade. Queria que a mulher cumprisse esse seu ideal. Queria que ela sarasse para fazê-lo feliz. Ele amava mesmo a mulher, tanto e de tal forma que a fez objeto do seu amor, tornando-se cúmplice de todo um investimento de cura sobre sua fragilidade emocional. A mulher também amava o marido, mas logo que tomou conta de si, partiu: era uma questão de compostura, a vida em comum estava deteriorada.
A mulher, na vida doméstica, expressava insatisfação sexual com o marido, e nas suas conversas com o psiquiatra ironizava o seu gosto pela vida matrimonial, além de ter devaneios sexuais na sua frente. O psiquiatra não percebeu as queixas sutis da personagem, mas a plateia deve estar atenta à fala remota do autor (daí eu discordar do diagnóstico oficial). Ora, a vida real é muito mais do que a vida conjugal. Isso foi o bonito da peça, a sua dimensão artística para além do entretenimento: o espetáculo falava da vida real; os azares do casal eram apenas o argumento, o veículo da mensagem.
Nesse tempo em que se vive a moda do ser feliz nem que seja com receita médica, uma pergunta e uma resposta da peça: “Existe diferença entre ser feliz ou se achar feliz? Nenhuma, para quem nunca pensou nisso”. Pensar pode restar desconfortável. Diz Fábio Barbirato, psiquiatra, no programa: “Quando assisti à montagem americana, fiquei emocionado e empolgado com o poder de conscientização que a arte possibilita. As pessoas saíam do teatro mais despertas e atentas”. É uma advertência da arte: você, talvez, se ache feliz, mas pode descobrir que não o é, se parar para pensar. Melhor fugir do assunto. Ou não.
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