Internacional
'Vem aí uma onda Milei', diz publicitário brasileiro que prevê vitória do ultradireitista no 1º turno argentino
Estrategista de campanha que atua na Argentina e outros países latino-americanos vê o candidato da extrema direita como parte de um 'fenômeno global' de líderes antissistema
Em 2021, quando trabalhava com um candidato a deputado argentino, o publicitário Renato Pereira ficou surpreso ao ver um comício estilo show de rock do então candidato a deputado Javier Milei, que terminou sendo a grande surpresa das eleições legislativas daquele ano. Desde então, ele acompanha a carreira do azarão na disputa presidencial argentina e foi um dos poucos a enxergar antes que Milei seria o mais votado nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), realizadas domingo passado.
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Entenda: Por que a vitória de Milei nas primárias argentinas trouxe tanto nervosismo aos mercados?
Formado em antropologia, Pereira fez carreira na política brasileira e foi responsável pelas campanhas dos ex-governadores do Rio de Janeiro Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão e do ex-prefeito do Rio Eduardo Paes, entre 2010 e 2016. Por esses trabalhos, fez um acordo de delação premiada, homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018, no qual revelou casos de caixa dois, direcionamento de licitações e pagamento de propina quando era sócio da agência Prole.
Em entrevista ao GLOBO, o estrategista de campanha, que também atua na Venezuela, Peru e outros países latino-americanos, prevê que Milei poderá ganhar no primeiro turno em 22 de outubro e explica como vê o político de extrema direita como parte de um fenômeno global de líderes antissistema que são capazes de interpretar os sentimentos e desejos dos mais “precarizados”.
O senhor já trabalhou com candidatos argentinos e esteve até julho envolvido na atual campanha. Ficou surpreso com o resultado das primárias de domingo?
Não fiquei surpreso de jeito nenhum. Conheci Milei em 2021, quando trabalhava com Facundo Manes, candidato para as legislativas daquele ano que obteve mais de um milhão de votos, um bom resultado para alguém que também vem de fora do sistema político. Naquele momento, estava baseado no bairro de Vicente López [na Grande Buenos Aires] e um dia, saindo do hotel, vi que acontecia um show de rock, as pessoas todas vestidas de preto: era um dos primeiros comícios do Milei. Fiquei boquiaberto e passei a acompanhar o Milei desde então. Durante todo esse período, a ideia do Facundo era ser uma espécie de outsider do bem, e o Milei trilhou um caminho muito mais histriônico e contundente.
Milei seria um outsider do mal?
Acho que criamos um viés desnecessário quando olhamos o que está acontecendo, que impede que vejamos o principal. Achei que Milei ganharia desde que o conheci. No final da campanha, antes das Paso, fui uma das vozes isoladas no Brasil e na Argentina. A maioria das pessoas dizia que o Milei já era. Sempre disse que ele ganharia ou, no máximo, ficaria em segundo lugar. As pesquisas erraram pelo mesmo viés que muitos têm ao olhar o que está acontecendo. Milei faz parte de um fenômeno que é global. Você pode observar [Volodymyr] Zelensky, presidente da Ucrânia, ou o Movimento 5 Estrelas [da Itália], [Marine] Le Pen [na França], Pablo Iglesias [na Espanha], [Pedro] Castillo [no Peru], Gabriel Boric [no Chile], [Jair] Bolsonaro e Milei. O que muda entre eles é o crachá. Alguns são de esquerda, outros de direita e outros de ultradireita. Mas a digital antissistema é a mesma. Acho que temos olhado muito pro crachá, com os óculos de um mundo dividido entre esquerda e direita que não é mais suficiente para dar conta do que vemos. A fissura — o que os argentinos chamam de “grieta” — do momento é entre uma base de precarizados e a elite. Essa turma é a que está sendo mobilizada por Bolsonaro, Donald Trump nos Estados Unidos. Foi o que fez Iglesias na Espanha.
Milei conseguiu mobilizar os precarizados argentinos?
Sim, que é uma categoria ampla e transversal. Ela pega desde os que fazem entregas de bicicleta, colegas de profissão que viraram free lancers, pessoas com doutorado que não encontram uma carreira segura com plano de saúde. São pessoas que vão se precarizando, e claro que na massa dos mais pobres essa turma é muito mais representativa. Nos países com realidades sociais mais complexas, como Brasil e Argentina, eles proporcionalmente são muito maiores do que os não precarizados. São pessoas sem perspectiva, que vivem cada vez pior em todos os sentidos. Porque não se trata apenas de economia, também de autoestima. Como você encara seu filho de noite se não sabe como será seu dia de amanhã?
Milei vem da classe média e fez dinheiro como economista…
Sim, ele é um membro das novas elites, que têm formação, acesso ao conhecimento, já alguma grana. Milei trabalhou num dos maiores grupos privados argentinos. Mas são pessoas sem acesso ao poder político. Vemos uma guerra dos tronos entre novas elites e elites estabelecidas e, embaixo, uma massa de precarizados. Trump fura o sistema político norte-americano mobilizando essa base de precarizados. É um erro pensar que são coisas passageiras, basta ver o exemplo de Trump nos EUA.
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Ele apostou nos precarizados desesperados argentinos, que não aguentam mais as sucessivas crises que assolam o país…
Ele tem duas credenciais importantes: não integrou nenhum governo e é economista. Duas belas credenciais para o tipo de crise que a Argentina vive. A proposta dele não tem nada de delirante, porque temos de pensar nos ouvidos da população argentina. Quando se fala em dolarizar, estamos falando em adotar uma moeda à prova de políticos. As pessoas pensam assim: a dolarização não permitirá mais que interfiram no valor da minha moeda, acabou. Tem um exemplo bem-sucedido que é o Equador, onde ninguém quer abrir mão da dolarização. Bem-sucedido do ponto de vista da população equatoriana. As propostas principais de Milei são derrubar a casta política e dolarizar a economia. As duas têm forte ressonância, e ele foi o único que apresentou uma proposta.
A pergunta que não quer calar é como dolarizar um país que tem escassez de dólares?
Não se pode falar da dolarização como uma proposta fake. Podemos discutir se é viável, se pode ser feita agora ou depois, mas é uma proposta concreta. E o principal é ele ser antissistema.
Muitos argentinos querem isso, derrubar o sistema?
Claro. Se fizéssemos uma escala de políticos antissistema, Milei provavelmente pontua lá encima. A agenda dele defende acabar com o Banco Central, liberar as drogas, acabar com os ministérios da Saúde, Educação, do Desenvolvimento Social. Milei é muito mais antissistema que Bolsonaro e Trump. Os mercados e establishment argentinos ainda estão em choque, sem saber se ele vai se compor com eles ou não. Deste fenômeno global, Milei é o mais antissistema e é um rock star. É uma pessoa que facilmente pode contagiar para fora da Argentina. Para mim, Milei já ganhou a eleição.
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No primeiro turno?
Ele tem mais chances de ganhar no primeiro turno do que de perder a eleição. Vem por aí uma onda Milei. Ele é uma expressão visceral do que os argentinos querem. Não é um produto de um bando de conspiradores, é uma coisa espontânea com um personagem carismático e profundamente antissistema.
Em sua campanha, Milei promete recuperar a Argentina de inícios do século passado, um país que era um dos mais ricos do mundo. As expectativas são grandes...
Claro, mas a versão real do slogan dele é “Viva la libertad carajo” (viva a liberdade caralho, em tradução livre). É um grito de guerra dos precarizados. Não é o vocabulário da elite, é o vocabulário da rua, da vida como ela é. Essa é a síntese da mensagem dele, é você se libertar dos políticos, libertar sua vida, libertar o seu país.
Muitos comentam que o grande perdedor das primárias foi o peronismo. O senhor concorda?
Politicamente, você tem um governo terrivelmente mal aprovado, com inflação de 120% ao ano, pobreza e violência explodindo no país, e nessa eleição a maior coalizão opositora perdeu. Para mim, o grande perdedor foi a aliança [opositora] Juntos pela Mudança. O [Sergio] Massa [ministro da Economia e candidato a Presidência] tem de onde se segurar, no piso do kirchnerismo. Mas de onde se segura a Patricia Bullrich [candidata da Juntos pela Mudança]? Ela é um Milei de segunda categoria.
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O senhor imagina um segundo turno entre Milei e Massa?
Não, porque eu acho que não haverá segundo turno. Muitos argentinos não acreditavam que Milei pudesse ganhar, e agora sabem que é possível. A chance de ter uma onda Milei é enorme.
O senhor vê fraquezas em Milei?
Milei é um buraco negro que se alimenta da existência do sistema político argentino. Quando você luta contra uma figura antissistema é difícil, porque ele se alimenta de você mesmo. Mesmo sem ter estrutura nacional, ganhou na grande maioria das províncias. No Brasil, Bolsonaro tinha as igrejas evangélicas, as Forças Armadas, dando um suporte. Milei não tem nada disso, não tem sequer família, é superisolado. Mas essas supostas fraquezas institucionais foram percebidas pelo eleitorado precarizado como algo que os aproxima deles.
Mas na hora de governar ele terá de negociar muito...
Se Milei dura ou não dura, é uma questão mais complicada. Mas o caminho para ele vencer a eleição é uma avenida.
Já podemos falar num grande movimento político por trás de Milei?
Tudo o que ele tem é um movimento, o que ele não tem é a institucionalidade típica do sistema tradicional. Esse movimento é real, calçado numa base social criada pelo mundo contemporâneo globalizado.
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