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Bolinhas Amarelas
Há tempos que eu não passava pelo centro da cidade. Essa invenção dos judeus americanos, o Shopping Center, fez a civilização mudar de hábitos. Em minha mocidade andar pela Rua do Comércio era o melhor divertimento vespertino. Os jovens adoravam o programa. Depois da sessão das três horas do Cine São Luiz, encontravam os amigos encostados nos carros estacionados olhando o movimento, assistindo o desfile das meninas bonitas dos Colégios Sacramento e São José desfilando juntas, sorrindo, rumo à sorveteria DK-1 ou à Gut-Gut. Eram os pontos da paquera, dos namoros, dos convites para festas. Deliciando um sorvete de pinha, mangaba, manga ou chocolate, as conversas prolongavam até escurecer. Nós moradores da Avenida da Paz, caminhávamos descendo do Centro em direção às nossas casas. Ao passar pelo Arcebispado, havia um ambulante vendendo um divino suco de maracujá com pão doce. Muitas vezes nem jantávamos. Agora está tudo mudado, prédios modernos, bancos, expulsaram os carros, o que fizeram muito bem. O centro da cidade pertence aos pedestres.
Ao sair do Banco do Brasil na Rua do Livramento resolvi dar uma volta no centro da cidade. Avistei a Sorveteria Danúbio, alegrou meu espírito e o metabolismo do corpo em temperatura alta. Minhas glândulas salivares se encharcaram ao pensar no sorvete de mangaba. Enchi a taça, sentei-me numa mesa de onde avistava a rua, o vai-e-vem do povo. Saboreava o sorvete devagar enquanto imaginava quem seriam aquelas pessoas anônimas dando vida ao centro da cidade.
Uma senhora gorda, de preto, andava com mão direita segurando uma criança loura, devia ter cinco anos, ela chorava pedindo alguma coisa, a gorda negava com paciência puxando-a pela mão. Senhores de terno, apressados, pareciam advogados ou corretores, andavam para um lado, depois apareciam outros, parecendo às mesmas pessoas. Jovens bonitas davam graça à rua com calças apertadas, marcando as curvas, barriga de fora, inspirando fantasias nos homens. Um mendigo, maltrapilho, calça rota, descalço, camisa rasgada, entrou na sorveteria de mão estendida. Um funcionário discretamente pediu que se retirasse empurrando o miserável. Teoricamente sou bondoso, o mendigo me fez pensar na injustiça social de nossa terra.
Estava nesses devaneios quando ela apareceu. Devia ter 20 anos, jovem da classe média, com porte nobre de dama, e uma mini saia de entusiasmar eunuco. Entrou na sorveteria como uma rainha, bolsa e um jornal na mão. Por cima da saia, uma blusa azul claro. Rosto oval, coberto por cabelos negros, escorridos. Nariz afilado dava um perfil de deusa grega. Completava uma boca encarnada e carnuda, dentes alvos e brilhantes. Nas orelhas pendiam duas grandes argolas feito brincos. A deusa encheu a taça de sorvete, voltou em direção à mesa em frente.
Colocou a bolsa, o jornal e a taça de sorvete em cima da mesa, sentou-se voltada para meu lado. Foi quando percebi melhor sua pele branca rosada parecia porcelana, sem defeito de fábrica. Tomou sorvete como um ritual, cada colherada na boca, empurrava a colher, e retirava com uma lambida mostrando a maravilhosa língua carmim. A jovem abriu o jornal, leu anúncios. Devia procurar emprego. Riscava o jornal, penetrava a colher cheia de sorvete em sua boca. De repente cruzou as pernas. Tive um susto quando aconteceu, não me preparei para aquele espetáculo de sensualidade. Não, ela não estava como a Sharon Stone, a doce jovem vestia calcinha azul cm bolinhas amarelas.
Ela percebeu meu olhar impertinente. Em vários momentos repetiu o magnífico gesto em cruzar as pernas. Se não estivesse tão entretida lendo o jornal, seria capaz de jurar que balançava as pernas propositalmente. Eu era o único ser vivo a assistir àquele espetáculo sensual. Cinema grátis, como nós chamávamos quando menino. Assisti maravilhado o desenho animado das bolinhas amarelas.
Até que a jovem com elegância levantou-se. Arrumou o jornal, a bolsa, olhou para os lados. Sorriu-me discretamente, saiu lépida e faceira rumo à Rua do Comércio.
Também saí da sorveteria, fiquei admirando ao longe seu andar, doce balanço a caminho do nunca mais. Parecia dona do mundo. De repente, assustei-me; quando ela passou pela Igreja do Livramento, olhou para trás, me encarou, como tivesse certeza de eu estar ali. Acenou-me duas vezes com a mão, desapareceu entre os passantes. Foi a única e última vez que vi a jovem da bolinha amarela.
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