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Sem dó, nem piedade
Uma vez ou outra, um e outro jovem, sempre acabam me interpelando com uma pergunta que eu, quando tinha a idade deles, também fazia. A pergunta cabeluda, no caso, é: se Deus é bom, como Ele permite que exista tanto mal no mundo? Como pode um trem assim?
Acredito que todo mundo, em muitos momentos da vida, acabaram sendo assediados por essa indagação que, naturalmente, tem sua escandalosa razão de ser.
Bem, mas voltemos ao ponto: como havia dito, quando moço, tive meu coração invadido por esse tipo de dúvida que, confesso, causava-me grande angústia e, por isso mesmo, toda vez que um jovem vem até mim com algum questionamento similar a esse, de certa forma, vejo-me nele. Compreendo a angústia que comprime o seu peito.
Por essa razão, apresento nestas linhas, tortas e mal escritas, algumas considerações que podem ser encaradas como uma resposta possível que, com o passar das décadas, fui colhendo pacientemente e que, de modo gradativo, foi tratando as feridas dolorosas que tanto judiaram do meu coração.
Dito isso, sigamos em frente: pra começo de prosa, há um problema muito sério que se encontra sutilmente oculto sob múltiplas camadas de dúvida e indignação na qual esse tipo de pergunta se sustenta. Muito sutil mesmo, porque, quando perguntamos, de modo muito arguto, como é que Deus, sendo bom, permite que o mal se esparrame pelo mundo, estamos, sem nos darmos conta, considerando que tudo e todos neste mundão são maus, menos nós e, é claro, aqueles que concordam conosco nesse quesito.
Ora, se partimos de um pressuposto viciado como esse, de cara, já estamos tendo uma visão falseada sobre a realidade do mal e, principalmente, a respeito da natureza do bem e, tal visão, de modo mui dissimulado, acaba nos levando a ter uma compreensão tremendamente equivocada de Deus e, também e principalmente, do coração humano. Do nosso coração entortado pelas marteladas do pecado.
Por conta dessa visão tacanha que acalentamos em nosso íntimo, acabamos por nos esquecer que o mal não reside num lugar em particular, muito menos num grupo específico de pessoas. O mal, meu caro Watson, está em nosso coração, no coração de todos nós, como uma erva-daninha e, por isso mesmo, ele encontra-se presente no meio de nós e, de quebra, em tudo aquilo que fazemos (Romanos VII:15-25).
Por isso, Deus, em sua infinita misericórdia, tolera a presença do mal neste mundo. Se Ele resolvesse, de vereda, extirpar todo o mal que há na face da terra, para infelicidade de todos, principalmente para a infelicidade daqueles que se consideram muitíssimo bons, nós todos acabaríamos sendo extirpados da face do planetinha azul.
Aliás, essa é uma das leituras possíveis da parábola do joio e do trigo (Mateus XIII:24-46). Vale a pena ler de novo e reler, muitíssimas vezes, até decorar.
E tem outra! Lembremos que há outro ponto que, também, é muito sutil, e que precisamos corrigir. Se possível for, de imediato. No caso, é a própria pergunta.
Ao que me parece, ela não está muito bem formulada, pra dizer o mínimo.
Ao invés de perguntarmos porque existe tanto mal no mundo em que vivemos, poderíamos perguntar como é possível existir o bem num mundo tão corrompido como o nosso.
Meu Deus do Céu, como foi possível ter existido, no século XX, uma alma piedosa como Santa Irmã Dulce, que construiu um hospital de primeira a partir de um galinheiro abandonado? Como foi possível ter habitado entre nós, uma alma generosa como Albert Schweitzer, que investiu tudo, tudinho o que tinha, inclusive seu prestígio, na construção de um baita hospital no coração do continente Africano? Como é possível existirem tantas pessoas que, de modo similar a essas duas almas aquilatadas, derramarem mananciais de amor ao próximo por onde passam? Essas são as perguntas que almas medíocres e mesquinhas, como eu e você, deveriam fazer, mas não fazemos.
Pois bem, se permitirmos que essas questões adentrem e fecundem o nosso coração, se conseguirmos parar para meditar um bom tanto sobre elas, com toda certeza poderemos, com a alma mais leve, perguntar: como pessoas tão medíocres podem, de forma tão maliciosa, ignorar a presença e a ação do bem neste mundo corrompido e devastado por pessoas maliciosas como nós? Como? Ora, ignoramos porque nosso coração maculado estava olhando pelo prisma de uma pergunta mal formulada que desviava as nossas vistas das sutilezas do bem e, ao desviar, acabava por profanar o altar da nossa consciência.
Pois é. Quando mudamos a direção da pergunta, a malícia que estava escondida embaixo de um monte de camadas de bom-mocismo, afetação indignada e demais coisinhas similares, acaba sendo arrancada das sombras da nossa soberba nada original, para ser fustigada pela luz cintilante da bondade, da verdade e da beleza.
Deste modo, entendemos, com grande clareza, as palavras do Papa Francisco, ditas por ele logo no início do seu pontificado, onde o mesmo citava as palavras de uma senhorinha que, noutra época, teria sido sua paroquiana na Argentina. Disse ele, citando-a, que o mundo existe apenas por causa da misericórdia de Deus. Só por causa da misericórdia Dele. Apenas por conta disso.
E, diante dessas palavras, sejamos francos: se dependesse do nosso torto senso de justiça, bem provavelmente, o mundo já teria terminado a muito tempo e, com toda certeza, todos nós estaríamos condenados eternamente.
Detalhe: teríamos terminado com tudo e com todos sem dó, nem piedade, não é mesmo? Infelizmente, é isso mesmo.
Graças a Deus, o Altíssimo sabe muito bem o que faz, porque Ele é bom, ao contrário de nós, que mal conseguimos nos entender e, mesmo assim, imaginamos que somos muito, muito bons.
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