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Retiro com balada, valores em transformação
Há respeitáveis pensadores que afirmam um próximo choque de civilizações. O cristianismo e o islamismo voltariam às guerras da Idade Média, matando-se reciprocamente em nome do seu próprio deus. Não creio muito nisso. O pensamento islâmico, embora mais comprometido do que o cristão, terá dificuldades financeiras em sustentar combate na medida em que o Ocidente se desprender do petróleo. Outros dizem que o embate será com a China. Penso que com a China disputar-se-ão mercados aguerridamente, mas sem tiros; se houvesse uma guerra, creio que isso é bastante evidente, não sobraria quem a contasse.
A guerra física está, inclusive, sofrendo concorrência, ou incidência, da batalha ideológica: um combate midiático objetivando capturar mentalidades. A internet, a telefonia móvel e os satélites fazem estragos enormes, quando se pensa em disseminação de ideias (não por acaso vários países ocidentais vêm restringindo o TikTok, uma “arma” chinesa). São ideias e articulação: outro dia escrevi sobre o quanto as ocorrências da Primavera Árabe (2010/2011) chamaram a atenção do mundo. Foi fascinante ver um povo em esforços de transformação de si próprio, apoiado sobretudo por recursos tecnológicos avançados, em um combate magnífico com o pensamento religioso que o oprime.
Refletia sobre essas coisas e quase me passa batido que elas ocorriam também à minha vista: um “carro de som” anunciando missa. Nas praias da Jaguaruna, SC, há uma profusão desses veículos ofertando gás, melancia, festas noturnas, restaurantes, boi de mamão e, surpresa minha, missa. O locutor garantia variados espetáculos “coroados” por um padre artista. Isso é uma baita mudança na civilização. Há pouco tempo, não haveria uma única casa urbana sem um sino suficientemente perto para anunciar não só a missa, mas, também, a hora do ângelus. O toque conclamava ao momento sagrado da oração. O mundo católico, três vezes ao dia, entrava em comunhão. Agora, “carro de som” com aviso de espetáculo musical e “outras atrações”.
A atenção ao assunto se aprofundou; dei-me a acompanhar o que saía nos jornais. O que eu não estaria percebendo? Vem mudando muita coisa. Em cidades com planejamento urbano, por exemplo, não é qualquer bairro que aceita uma igreja. Há que ser demonstrado espaço para estacionamento, meios de escoamento sem atrapalhar o trânsito geral etc. E sem autofalante que perturbe a paz. Isso era impensável. O templo inaugurava qualquer cidade; era o centro da urbe e o orgulho da população. Agora, se houver barulho, algum vizinho busca a Justiça, porque não quer ser incomodado. E ganha o processo, porque barulho é barulho, não interessa em nome de quê.
Mas nada me situou mais e melhor no assunto do que certa matéria, a qual, faz algum tempo, foi estampada em jornais. Cito a FSP, 24jan10: a Royal Caribbean vendeu, para um cruzeiro pelas praias de Santos, Búzios e Ilhabela, 850 ingressos para um grupo de religiosos católicos, que se poria em luxuoso retiro para circunspectas orações. Segundo um sacerdote, “um retiro espiritual sobre as ondas”. Bem, o navio tinha capacidade para 2.435 passageiros. Afora os 850 beatíficos cristãos, os 1.585 restantes, ímpios, queriam balada. E aí, salvação versus pecado: para as mentes pias, foi uma esculhambação; para os mundanos, uma aporrinhação. Para mim, sociologia: costumes em transformação.
Veja-se a extravagante mistura que sucedeu, segundo o jornal: “Mulheres de biquíni..., bebida rolando solta, jogatina liberada”. Missa no deck da piscina, e na piscina, os banhistas. Os fiéis “olhavam feio se a gente estava de biquíni, se estava tomando bebida alcoólica, se falava alto, se jogava, se ria”. “Padres cantores, cantores religiosos, pregadores DJs do grupo Electro Cristo e até profeta a bordo”, que “participou da adoração do santíssimo, fez palestras de cura e libertação, imposição de mãos, movido por bebidas energéticas”. Uma senhora irá novamente, “se Deus Pai deixar”, pois voltou com a “bagagem reforçada pelo Espírito Santo”. Também vou, não perco isso por nada: guerra na Civilização.
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