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Contrabandista de nós mesmos
O ser humano é um bichinho complicado pacas. Somos complicados por fora, na forma como nos relacionamos uns com os outros, mas somos muitíssimo mais intrincados e confusos por dentro, nos porões da nossa alma, onde carregamos boleiras de tranqueiras e traquitanas sem nos darmos conta.
Uns dizem que isso seria produto de uma série de defeitos de fabricação que, desde priscas eras, acompanham a humanidade, sendo passados de geração em geração. Outros, por sua deixa, afirmam que, naquilo que os primeiros veem como sendo a causa da nossa perdição, seria a fonte primeira de nossa razão de ser.
De minha parte, prefiro pensar que, neste caso, o caminho não seria, necessariamente, nem oito, muito menos oitenta, mas sim, um meio termo.
Não há dúvida alguma que pesa sobre nós inúmeras forças que influenciam a nossa maneira de ser e, em muitos casos, acabam por determinar, e deformar, a nossa personalidade. Forças essas que, na grande maioria das vezes, são ilustres desconhecidas e, por isso mesmo, cara pálida, acabam tendo tanto poder sobre nós.
Ora, quantos e quantos cacoetes, quantas e quantas manias e maus-hábitos nós cultivamos sem sabermos o porquê. E não sabemos por que nunca paramos para refletir a respeito da origem destes trens fuçados.
Pior! Nunca paramos para procurar nos conhecer melhor e, com isso, nos lapidar; mas, com uma frequência sem igual, nos esmeramos para justificar tudo aquilo que é torto e malicioso em nosso jeito tosco de “não ser”.
Aliás, é incrível como somos rápidos para apresentar uma porca justificativa para nossos desatinos, não é mesmo? E o somos porque fazer isso é mais cômodo, bem mais confortável. Para muitos é mais gostozinho permanecer incônscio de si do que lavorar para drenar os brejos da alma.
Em curto prazo, tal impostura dos cultores da insciência crítica, acaba propiciando uma sensação analgésica de estar acima de toda e qualquer culpa, porém, em médio e longo prazo são outros quinhentos e aí, não temos como escapar daquele jantar com as implicações geradas pelos frutos das nossas inconsequências.
É, meu amigo. Todo aquele que procura soterrar no solo da alma todos os entulhos e cadáveres de sua vida, cedo ou tarde verá brotar do solo da sua consciência, um odor putrefaz daquilo que, como certa feita havia dito o poeta Manuel Bandeira, seriam os restos de uma vida que poderia ter sido, mas não foi. E tudo aquilo que poderia ter sido, mas não foi, fede; como fede.
De forma similar a uma tragédia grega, em algum momento da vida a nossa consciência consegue nos despertar desse torpor e, muitas e muitas vezes, quando isso acontece, já é muito tarde para que possamos consertar o estrago feito por nós mesmos.
E o pior de tudo é que não há uma viva alma que esteja fora dessa barca. Cada um de nós, ao seu modo, encontra-se ciente de muitas coisas, consciente de outras tantas, mas permanecemos, admitamos ou não, inconscientes, mergulhados em uma profunda letargia, diante de uma infinidade de coisas que, por isso mesmo, acabam ficando a léguas de distância do nosso controle.
E, como dizia Carlos Drummond de Andrade, essa casinha de marimbondos, que é nosso modo inconsequente e irrefletido de ser, que corrói nossa alma, acaba nos transformando em amigos desleais, maus esposos, péssimos pais, filhos ingratos, devotos dissimulados, profissionais sem compromisso, governantes mafiosos, cidadãos sem brio e assim por diante.
E seguindo nesse passo, para chegarmos nos finalmente, por acaso me lembrei duma passagem que, a meu ver, é bastante significativa.
Todos sabemos que Alexandre, o grande, conheceu o filósofo Diógenes, como também sabemos que o filósofo canino desdenhou por completo a majestade do filhinho do seu Filipe II e da dona Olímpia de Epiro. Porém, muitas vezes, damos pouca atenção ao comentário que teria sido feito por Alexandre diante dos impropérios ditos por seus companheiros a respeito do sábio, que eles julgavam ser um louco varrido, ou algo que o valha. Disse ele: se eu não fosse Alexandre IV, ficaria feliz em ser Diógenes de Sínope.
Alexandre carregava o fardo de ser um conquistador do mundo, não podendo desprezar nada; Diógenes, por sua deixa, havia conquistado a si mesmo e, por isso, podia desprezar tudo, inclusive os juízos maldosos ditos a seu respeito.
O macedônio teve um lampejo de luz, mas preferiu fechar seus olhos e seguir em frente na sua procura insana pela poeira da glória; de forma similar a nós que, vez por outra, temos a oportunidade de mudar a nossa maneira de ser, mas optamos em fechar os olhos, virar as costas e seguir pra diante, para melhor desistirmos de nós mesmo, ou algo próximo disso.
(*) professor, escrevinhador e bebedor de café. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros livros.
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