Internacional

Futuro de Gaza vira tema antes de fim do conflito e expõe divergências entre Israel e aliados ocidentais

EUA e Reino Unido expressaram oposição à ideia de reocupação da Faixa de Gaza defendida por autoridades israelenses

Agência O Globo - 08/11/2023
Futuro de Gaza vira tema antes de fim do conflito e expõe divergências entre Israel e aliados ocidentais
Faixa de Gaza - Foto: Reprodução

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, deixou claro, nesta quarta-feira, que os Estados Unidos são contra a possibilidade de Israel voltar a ocupar a Faixa de Gaza, como ocorria antes da retirada unilateral de militares e colonos israelenses do enclave, em 2005. No Japão, após encontro do G7 — que reúne as economias mais industrializadas do mundo — Blinken afirmou que Israel precisa começar a “estabelecer condições para uma paz duradoura” e deu as declarações mais consistentes até agora sobre a visão de Washington para o cenário pós-guerra em Gaza.

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— Gaza não pode continuar a ser governada pelo Hamas. Isso apenas convida à repetição do 7 de outubro — disse o secretário americano, em referência ao dia que deu início ao conflito atual, quando o Hamas invadiu o território israelense executando o maior ataque terrorista no país desde sua fundação, quando morreram 1,4 mil pessoas. E completou: — também é claro que Israel não pode ocupar Gaza.

Blinken admitiu, porém, que poderá haver um período de transição, mas que, segundo ele, não resultaria em uma reocupação do território.

— A realidade é que poderá haver a necessidade de um período de transição no fim do conflito. Nós não vemos uma reocupação e o que eu ouvi dos líderes israelenses é que eles não têm a intenção de reocupar Gaza — disse Blinken.

Essa posição de autoridades de Israel, no entanto, não está tão clara para parlamentares e integrantes do governo, de acordo com o jornal israelense Haaretz. O jornal publicou reações críticas de diplomatas ocidentais, que vem apoiando o país desde os ataques sem precedentes do Hamas, a posturas no alto escalão da política israelenses em defesa da retomada dos assentamentos na Faixa de Gaza.

De acordo com o Haaretz, um exemplo é o ministro do Patrimônio, Amichai Eliyahu, suspenso no sábado após sugerir o uso de armas nucleares na Faixa de Gaza. O político de extrema direita disse em várias ocasiões, nas últimas semanas, que os assentamentos israelenses deveriam ser reconstruídos em Gaza após a guerra. Para os diplomatas ouvidos pelo jornal, a postura serve apenas para minar a diplomacia pública do país.

Engrossando o coro dos críticos, o chanceler britânico, James Cleverly, também ecoou a fala de Blinken após o encontro do G7.

— No curto prazo, é inevitável que Israel, por ter tropas em Gaza, precise ter uma responsabilidade de segurança. Mas a nossa opinião é que, assim que possível, um movimento em direção a uma liderança palestina favorável à paz é o resultado mais desejado.

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'Período indefinido'

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, botou lenha na fogueira, na última segunda-feira, ao afirmar em uma entrevista a rede americana ABC News que o país teria a “responsabilidade total pela segurança” de Gaza após o conflito, "por um período indefinido" depois de terminar as suas operações, que entraram no segundo mês.

— Vimos o que acontece quando não a temos — disse o primeiro-ministro ao apresentador David Muir. — Quando não temos essa responsabilidade de segurança, vemos a erupção do terror do Hamas em uma escala que não poderíamos imaginar.

As declarações do premier acenderam sinal vermelho em Washington. O porta-voz de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, disse nesta quarta que os EUA se opõem à ocupação de Gaza por Israel após o conflito. Na terça-feira, o porta-voz do Departamento de Estado, Vedant Patel, já havia expressado oposição a qualquer cenário de controle israelense por tempo ilimitado.

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— Na nossa opinião, os palestinos deveriam estar na vanguarda dessas decisões, Gaza é território palestino e continuará sendo território palestino — disse Patel a repórteres. — De modo geral, não apoiamos a reocupação de Gaza e Israel também não.

O ministro dos Assuntos Estratégicos de Israel, Ron Dermer, saiu em defesa de Netanyahu em uma entrevista à rede americana MSNBC. Demer negou que o primeiro-ministro tenha falado em “ocupar Gaza”.

— Nós nos retiramos completamente de Gaza durante 17 anos e eles nos devolveram um estado terrorista. É óbvio que não podemos repetir isso — disse Dermer, que participa como observador no gabinete de guerra israelense.

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'Quem administrará Gaza?'

No entanto, na mesma linha do que disse o premier, Dermer destacou que "Israel deverá ter responsabilidade geral pela segurança por um período indefinido" no momento em que o Hamas não estiver mais no poder.

Questionado sobre como exercerá essa responsabilidade, o ministro disse que a questão ainda está em aberto, mas garantiu que “não será uma ocupação”. Ele admitiu que Israel enfrentará "o dilema do dia seguinte" depois de, segundo projeta o país, acabar com o Hamas.

— Quem administrará Gaza? Se for uma força palestina que governa Gaza para o bem-estar dos seus habitantes e sem querer destruir o Hamas, então podemos conversar — disse ele.

As contradições e incertezas do tema dentro do governo israelense apareceram, ontem, nas falas do ministro da Defesa, Yoav Gallant.

Durante uma audiência especial da Comissão de Relações Exteriores e Segurança da Knesset (Parlamento de Israel), Gallant afirmou que os objetivos após o fim do conflito em Gaza são remover a ameaça de segurança para os cidadãos israelenses, pôr fim à atividade militar e governamental do Hamas e garantir às forças israelenses liberdade de ação em Gaza "sem limitações nas operações".

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Mais tarde, porém, durante a coletiva de imprensa, ele afirmou que Israel não controlará o enclave depois do conflito.

— Posso lhe dizer quem não vai governar (Gaza). Não será o Hamas, e não será Israel. Tudo mais é uma possibilidade — disse.

Israel não fazia uma incursão militar terrestre em Gaza, como ocorre agora, desde 2014. O enclave palestino já foi território ocupado por assentamentos e militares israelenses, como é a Cisjordânia. Os israelenses se retiraram de Gaza em 2005, em um controvertido movimento unilateral que enfrentou dura resistência dos próprios colonos israelenses.

O governo do então primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, tomou a decisão de sair de Gaza, após a revolta conhecida como Segunda Intifada e uma escalada de violência que tornou difícil proteger os milhares de colonos que viviam no território.

No ano seguinte, o Hamas venceu as únicas eleições parlamentares realizadas em Gaza e, em 2007, expulsou do enclave o Fatah, o grupo político que controla a Autoridade Nacional Palestina (ANP) de Mahmoud Abbas, após uma breve guerra civil.

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'Papel central'

No domingo, em encontro com Abbas em Ramallah, na Cisjordânia, Blinken levantou a questão do envolvimento da ANP no futuro de Gaza pós-conflito. Segundo relato do encontro feito por integrantes do governo americano, o secretário de Estado afirmou que a ANP deve desempenhar um “papel central” no futuro da Faixa de Gaza.

Analistas lembram que a ANP se encontra enfraquecida como liderança palestina, mesmo nos territórios da Cisjordânia ocupada. Ao longo de décadas, o fracasso de tentativas de negociar a paz lideradas por ela minou lentamente a crença da população em seus líderes, vistos como corruptos e pouco eficazes na defesa dos interesses de seu povo.

Em entrevista ao GLOBO, no início da guerra, o coordenador de estudos do Oriente Médio da Universidade de São Francisco, Stephen Zunes, alertou para a instabilidade de um possível cenário “pós-Hamas”.

— Se o Hamas parar de funcionar como um grupo armado ou um governo, não há garantia de que não será substituído por um grupo terrorista, e possivelmente ainda mais extremo.

Em abril, um relatório do Crisis Group mostrou que, nos últimos dois anos, uma nova geração de grupos armados surgiu entre os palestinos da Cisjordânia, aparentemente sem vinculação direta com grupos organizados, como o Fatah e o Hamas. Desde o início dos bombardeios maciços de Israel sobre Gaza, em resposta ao atentado de 7 de outubro, foram vistas várias manifestações na Cisjordânia em que Abbas e o Fatah era alvos dos manifestantes.

Em resposta às declarações sobre o futuro de Gaza sem o Hamas, o porta-voz do grupo, Abdel Latif al-Qanou, disse no Telegram que “o nosso povo está em simbiose com a resistência e decidirá o seu futuro”. Em entrevista à rede al-Jazeera Arabic, Ghazi Hamad, um alto integrante do Hamas, respondeu com ironia a declarações de autoridades americanas sobre o pós-guerra em Gaza.

— Acho que os americanos estão sonhando muito — afirmou Hamad, acrescentando: — Eles falharam no Iraque, no Afeganistão, na Somália... Agora querem reestruturar Gaza?