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O meio é a mensagem, ou a falta dela
Alguns dias atrás, não faz muito, fui com minha família num atacado, daqueles que tem meio de tudo, pra comprar algumas utilidades para casa que, de um modo geral, não tem serventia nenhuma.
Pra ser bem sincero, todas as vezes que vou neste tipo de lugar, me divirto pacas com a seção das ferramentas, com o setor dos materiais escolares e de escritório e, diante de todas aquelas fascinantes tranqueiras, que mais olho com as mãos do que coloco no carrinho, sempre acabo por levar algumas daquelas maravilhosas quinquilharias de serventia duvidosa.
Dentre as ciladas que voluntariamente caí, destaco a compra de um pacotinho com envelopes postais, com as laterais ornadas com listras verde e amarela. Um pacote com dez unidades ao custo de R$ 3,00.
Tudo bem, na hora fiquei faceiro da vida com a aquisição, mas o que leva uma pessoa, no terceiro milênio, a comprar envelopes postais? Francamente, eu não sei. No momento me pareceu uma boa ideia. Bah! E que ideia.
Mentira. Sei muito bem porque comprei. Eu, como muitos, nasci e cresci num tempo em que as pessoas escreviam cartas. Eu mesmo escrevi muitas e recebi outras tantas e confesso: era muito bom escrever e enviar uma carta. Melhor que isso, somente recebê-las.
Sim, eu sei, a turma desse tempo em que tudo é dito e escrito na voada, sem ponderação, na velocidade dos histriônicos cliques digitais, não tem a menor ideia do que seja essa sensação, de como um relacionamento amoroso, ou uma amizade, eram construídas por meio de mensagens que tem o seu próprio tempo; um tempo que não era ditado pela temporalidade maquinal e isso, francamente, é uma pena que tenha se perdido.
A conversação por meio de missivas não tinha essa urgência que impera em uma conversa estabelecida pelo whatsapp, ou através das redes sociais. Nada disso.
Uma carta era pensada, sentida, escrita, revista, reescrita e, muitas vezes, complementada por uma e outra observação, tendo em vista que essa operação de pensá-la, escrevê-la, revisá-la e enviá-la, não era realizada de supetão. Não mesmo.
Levava alguns dias e, nesse tempo, as ideias iam clareando, as palavras eram depuradas, os sentimentos reordenados e, consequentemente, tudo o que seria dito era pesado e medido duma forma zelosa, para o melhor entendimento do nosso interlocutor que, por sua deixa, iria lê-la sem pressa, sem afobação ou algo desse naipe.
Isso mesmo! Uma carta, não era lida da mesma forma que nós lemos as mensagens que são vomitadas nas redes sociais. Elas eram lidas com reverência e relidas uma, duas, muitas vezes e, em cada releitura, as palavras eram ponderadas, refletidas, mediadas com atenção pela métrica da experiência em comum que estava sendo construída entre os interlocutores.
Não é à toa, nem por acaso, que muitas obras de grande quilate da literatura mundial sejam coletâneas de cartas. Aliás, boa parte do Novo Testamento nada mais é que um punhado de cartas de um tal de Paulo de Tarso, não é mesmo? E que cartas.
Lembro-me, certa feita, nos anos 90, quando tive a felicidade de conhecer um poeta. Se minha memória não está me pregando uma peça, seu nome era Paulo Marondi e, na ocasião, conversamos sobre isso, o papel das cartas na história, e ele, de forma etilicamente lacônica, disse-me: Zanela, uma carta tem poder, um poder que a galera não tem a menor noção.
Pois é. Elas têm poder, um poder que nos foi usurpado pelo dinamismo e pela velocidade dos meios digitais que se posicionam de forma onipresente em nossas vidas.
Pensando nisso, lembro-me agora das palavras do filósofo Louis Lavelle, em seu livro “A consciência de si”, onde o mesmo nos chama a atenção para a importância do ato de escrever enquanto um elemento fundamental para organizar o nosso pensamento e ordenar a nossa alma. Ou seja: essencial para o aprimoramento da nossa capacidade reflexiva.
Não preciso nem dizer, mas, como sou teimoso, irei falar mesmo assim: há uma diferença abissal entre a forma como escrevia-se algo, nos idos de Lavelle, e a maneira tacanha, ansiosa, irrefletida e reativa como nós digitamos nossas mensagens, cutucando freneticamente nossos aparelhos celulares com a ponta dos nossos dedos.
É claro, não iremos negar, de jeito maneira, as inúmeras belezuras que nos foram proporcionadas por essas ferramentas eletrônicas que, aliás, não são poucas; mas, para desfrutarmos dessas vantagens, não precisávamos ter mutilado nossa consciência dessa maneira.
Ora, o fato de uma mensagem ser enviada na velocidade de um estalar de dedos não significa, de jeito maneira, que as palavras devam ser escritas, lidas, sentidas e refletidas na mesma velocidade.
Na verdade, não tem como, porque quando lemos e escrevemos com a volúpia alucinante e alienante das ferramentas digitais, ao invés de refletirmos e sentirmos, acabamos apenas reagindo de forma impulsiva, o que acaba por reduzir as palavras a condição de meros grunhidos, acompanhados, é claro, de alguns emojis ou figurinhas.
Por isso comprei os tais envelopes inúteis. Para lembrar de tudo aquilo que nós perdemos e que, ao que tudo indica, não estamos nem um pouco interessados em recuperar.
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