Brasil
Morte de três idosos embasa prisão de médico do RS investigado por outros 39 óbitos
João Batista de Couto Neto, de 46 anos, foi detido no Hospital Municipal de Caçapava, no interior paulista, enquanto exercia a profissão. Polícia ainda tenta entender motivação
O médico cirurgião João Batista de Couto Neto, de 46 anos, é investigado há mais de 1 ano por ter provocado a morte de pelo menos 42 pacientes, além de lesões corporais a outros 114, em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. Mas sua prisão, realizada nesta quinta-feira, em São Paulo, após indiciamento por homicídio doloso qualificado, se fundamentou na conclusão de apenas três desses inquéritos. São crimes que, segundo os investigadores, teriam sido cometidos contra dois homens e uma mulher: todos eles idosos.
No pedido de prisão preventiva, aceito na quarta-feira pelo juiz Guilherme Machado da Silva, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a Delegacia de Novo Hamburgo argumentou que João Batista de Couto Neto agia com dolo eventual, ou seja, ele assumia o risco de matar seus pacientes.
O cirurgião foi indiciado por homicídio doloso qualificado por motivo torpe, meio cruel, uso de recurso que dificultou a defesa da vítima e agravado por violação de dever inerente à profissão e praticado contra vítimas maiores de 60 anos. Se condenado, Couto Neto pode ter que cumprir pena de reclusão de 12 a 30 anos por cada um dos três crimes.
A polícia reuniu diversos relatos de parentes de pacientes que perderam a vida ou ficaram com sequelas permanentes por erros médicos grosseiros cometidos por João Batista de Couto Neto num hospital particular de Novo Hamburgo. As investigações revelaram que o cirurgião acumulava mais de 25 cirurgias por dia, a princípio, visando obter vantagem financeira. Mas, para os investigadores, as denúncias levantaram também a hipótese de crueldade deliberada por parte do médico.
— Há um somatório de situações. Mais cirurgias, visando mais lucro, pressa nos procedimentos cirúrgicos, omissão em pós-operatórios, descaso com as vítimas de um modo geral. Mas temos ainda mais 39 casos de homicídio em tese em investigação e 114 ocorrências de lesão corporal. Ao final de tudo isso poderemos ter um diagnóstico mais acertado — comentou ao GLOBO o delegado Tarcísio Lobato Kaltbach, à frente das investigações na Delegacia de Novo Hamburgo.
Após o início das investigações, João Batista teve a licença médica suspensa, mas, em outubro, essa suspensão venceu. Assim, ele conseguiu deixar o Rio Grande do Sul, onde estava em evidência, e resolveu se registrar no Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). Quando foi preso nesta quinta-feira, ele exercia a profissão plenamente no Hospital Municipal de Caçapava, no interior paulista. A reportagem questionou a prefeitura sobre a contratação do cirurgião, mesmo com as graves suspeitas que pairavam sobre ele, mas ainda não obteve um retorno.
Em contato com o EXTRA, nesta quinta-feira, o advogado de defesa de João Batista de Couto Neto, Brunno de Lia Pires, criticou a prisão de seu cliente, que alega inocência.
— Com surpresa a defesa recebeu a notícia da decretação da prisão preventiva do médico João Couto Neto. A decisão não se reveste de qualquer fundamento fático ou jurídico e constitui clara antecipação de pena, com a finalidade de coagir e constranger o médico. Impetraremos ordem de habeas corpus o mais breve possível para fazer cessar a absurda e imotivada prisão — disse.
Quem é o médico?
No ano passado, quando ainda mantinha no ar suas redes sociais, Couto Neto exibia em seu perfil, como forma de propaganda pessoal, a marca de mais de 25 mil cirurgias realizadas em 19 anos de profissão – uma média de cerca de 1,3 mil por ano. O profissional era participativo na internet, onde ostentava mais de 15 mil seguidores no Instagram, além de outros 13 mil, no Facebook.
Couto Neto dizia ser formado em Medicina pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL) e graduado em Cirurgia Geral, em 2003, pelo Hospital Nossa Senhora da Conceição, de Porto Alegre. Segundo ele, possui ainda diversas especializações ao longo da carreira em cirurgia do aparelho digestivo, vídeocirurgia, entre outros. Dizia ser membro da Sociedade Brasileira de Vídeocirurgia (Sobracil), do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e, também, da Sociedade Brasileira de Hérnia.
Há 1 ano, no dia 12 de dezembro de 2022, quando foi afastado por 180 dias das mesas de cirurgia por decisão da Justiça gaúcha, o cirurgião comentou sobre a marca de "mais de 20 mil cirurgias realizadas" e exaltou o exercício da Medicina.
"Atuar como médico é sempre um grande desafio. Temos plena consciência e certeza de praticar a medicina para a melhor saúde dos pacientes", escreveu. "E com esta responsabilidade e maturidade, nos sentimos confortáveis em afirmar que realizamos mais de vinte mil cirurgias e procedimentos durante os últimos 19 anos, cumprindo os mais elevados preceitos médicos, honrando esta profissão que é a melhor tradução de minha vida."
Em maio de 2021, Núbia Costa, de 72 anos, se consultou com o médico João Couto Neto, em Novo Hamburgo (RS), por causa de uma pedra na vesícula. Como a retirada é considerada um procedimento simples, o especialista em cirurgias do sistema digestivo marcou a intervenção para o mesmo dia, e três horas depois, ela foi feita. Ao dar alta, o médico avisou que havia ocorrido uma perfuração no intestino, mas sem gravidade, e que o corte estava suturado.
Nas semanas seguintes, parentes avisaram a Couto Neto que a idosa estava se sentindo mal. Mas ele deu pouca atenção ao problema, até ela ser internada novamente, 17 dias depois, com uma uma infecção generalizada no abdômen. Núbia morreu em julho, na cama do hospital.
Além de sofrer com a perda, Cristiana Costa, filha de Núbia, contou ao GLOBO no ano passado que ficou estarrecida com a “soberba e o descaso” com que o médico tratava a paciente e seus parentes, na segunda internação.
— Quando minha mãe teve alta, ele disse que tinha perfurado o intestino sem querer, mas que já havia feito a sutura e não teria nenhum problema. Como sou leiga no assunto, acreditei. Mas ela nunca esteve bem. Ficou sentindo dores abdominais, vomitando. Quando eu trocava mensagens com ele, as respostas eram de que estava tudo normal, ele só receitava chá e leite de magnésia. Houve várias etapas em que poderiam reverter a situação. Mas minha mãe não teve a oportunidade — lamenta Cristiana.
A filha de Núbia contou que o cirurgião era frequentemente indicado como o especialista para questões digestivas em dois dos três convênios de saúde mais fortes do município, que fica na Região Metropolitana de Porto Alegre.
— Ela ficou 60 dias no hospital até falecer. No final, já estava com uma cratera na barriga, porque de tanto abrir, não adiantava mais costurar. Era coisa de terror. Depois, ainda descobri que o caso da minha mãe nem foi o pior de todos — recorda Cristiana.
A filha da idosa contou que, no final da internação, conversou com enfermeiros e funcionários do Hospital Regina, onde Couto Neto mais costumava trabalhar, e descobriu que o caso da sua mãe não era inédito. Nos meses seguintes, em conversas pela cidade e pela internet, um grupo de vítimas e parentes se formou. Até que familiares de 15 ex-pacientes contrataram um advogado para denunciar o cirurgião à polícia. Hoje, o grupo tem parentes de 50 supostas vítimas.
— Entre os casos, há uma senhora que está em estado vegetativo há cinco anos, por causa de uma perfuração no fígado. Gente que teve perfuração de veia. Há outra ex-paciente que passou pela nona cirurgia tentando arrumar o intestino. — enumera Cristiana. — Atribuo tudo o que ele fez de errado à falta de conduta. Faz tanto tempo que isso vem ocorrendo que a gente fica se perguntando por que precisaram acontecer tantos casos para alguma coisa ser feita.
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