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A conformação do\a outro\a
Sempre me dirão que comportamentos são maleáveis, que alguém pode transformar-se noutra pessoa. Por método, admito a possibilidade, porém mitigo a admissão: é possível, mas não é provável. Os elementos constitutivos da personalidade são estáveis e informam conteúdos e formas de ser.
As pessoas não “caem” na sua maneira de viver a vida. Primeiro, são situadas (ou faladas) no mundo, principalmente pelos pais; depois, vão-se situando: lutando um tanto, acovardando-se outro, compondo-se com o derredor, ajeitam-se. É dizer: amoldam-se na lenda que criam de si.
Lenda nossa sobre nós mesmos é minha maneira de nomear o que Freud chamou de fantasia e Lacan ensinou como fantasma. Essa narrativa que construímos é fundada na invenção da nossa história: supomos ser o que nos convenceram mais o que nos persuadimos que somos.
Esse conto estabelece um território mental, que, com dores e sabores, torna-se nosso campo conhecido de viver. Nós o sabemos e o supomos seguro. Nos acomodamos a ele. Pouco\as ousariam e raríssimo\as conseguiriam aventurar-se fora do mapa indicativo que têm de si próprio\as.
Para a compreensão psicanalítica, essa experiência seria bastante improvável. Nosso mapa indicativo é traçado pela nossa psique, que exerce vontade própria, dado que nossa vida mental abriga uma dimensão inconsciente. O inconsciente, que incide sobre nossas decisões, não é controlável.
Os mecanismos de preservação do inconsciente, ademais, são atentos a mantê-lo como está, porque mudança dá origem a ansiedade. Mudar é dirigir-se para um lugar mental desconhecido. O não sabido implica risco, então, entram em funcionamento sistemas de contenção de aventuras.
Habitualmente, a vontade impetuosa fenece sem gesto, a pessoa remanesce nas suas adequações. Tendemos a nos repetir. No casamento vencido, no emprego desagradável, mesmo em algum desgosto conosco, arranjamos pretextos. À custa de nós e contra o mundo, ficamos ali.
Claro, uma situação incontornável: já não se lida com uma pessoa, mas com os sintomas de uma pessoa. Seus conflitos emocionais – neuroses – expressam-se por sintomas, recursos doentios necessários para seu relacionamento doentio consigo mesma e com suas circunstâncias doentias.
O humor, nesse modo de existir, vai-se turbando. Em geral inconscientemente, o\a indivíduo\a se aliena das circunstâncias: ou se aniquila, embotando o seu ser, ou hostiliza a quem atribui restrição; preserva-se, mas não liga importância com o mundo do qual não gosta e que não gosta dele.
Adianto esses dizeres para alcançar um assunto: convivências. Nas convivências amorosas, sobretudo, costuma-se querer que o\a outro\a mude: que seja, ou deixe de ser; faça, ou deixe de fazer. Quero o\a outro\a, mas quero que seja e faça o que eu quero, não o que é e faz.
Não confio na possibilidade. Lembro o já afirmado: é improvável alguém estruturado psiquicamente de determinada maneira mudar, menos ainda porque eu o quero. Não é simples impor mudança. Ademais, talvez o\a outro\a em questão goste-se como é e deseje seguir como está.
Além disso, intriga-me a ingenuidade, ou a petulância, ou ambas as coisas, de quem cobra mudança. As partes se conhecem, acompanham-se, recebem-se como são; conferem-se e se aceitam. Se a convivência se consolida, só então, iniciam-se as ingerências nas peculiaridades do\a outro\a.
Ora, o\a outro\a se apresentou, ou foi buscado\a, tal e qual era e, supostamente, é. Foi conferido\a na intimidade e se o\a aceitou em sua feição singular. Mediu-se alguém que, no tanto que se pode dar, deu-se a saber. Bem, esse\a alguém, se tirado do seu modo de ser, não será mais quem é ou foi.
Certos egos, egos ávidos, querem em tudo a projeção de si mesmos, a quem única e verdadeiramente amam. Egos narcísicos são assim: não apreciam a diferença, não têm prazer nas possibilidades tão abundantes das relações afetivas, só prováveis nas afinidades com desiguais.
É certo que se pode e até se deve recusar certas diferenças com as quais topamos, porém, sopesadas, não gostamos. Há seres com os quais não damos liga, não temos nem queremos ter coexistência. É caso de não conviver, de despedir-se com ou sem dores; não de investir em conversão.
Quem deseja a própria imagem e semelhança não deseja a mais ninguém. É verdade que esses tipos acabam, por tão solitários, não se encontrando, mas colidindo consigo, e, pior que tudo, tendo o mau gosto de nem de si se gostarem, de só gostarem da imagem idolatrada que projetam de si.
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