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O encontro marcado com calíope
Em toda roda de conversa, regada com um bom café ou com aquela cerveja, fala-se de tudo um pouco. Desde as tretas políticas do momento até sobre o famigerado sexo dos anjos.
Em meio a essas amistosas tertúlias, vira e mexe aparece o assunto da significativa perda de atenção, da capacidade de concentração, que vem afetando as pessoas na sociedade atual, especialmente as tenras gerações, mas também velhos dinossauros como esse que vos escrevinha neste momento.
E sempre que o assunto é esse, num estalar de dedos vem à minha mente o papel salutar que tanto a poesia como as artes marciais podem desempenhar na resolução desse entrevero demasiadamente humano.
É isso aí. Há uma relação íntima entre as artes marciais e a poesia. E quem diz isso, de forma direta, curta e grossa, não sou eu, mas sim, Paulo Leminski que, além de ter sido um poeta porreta, entre outras coisas, também foi faixa preta em judô (se você não sabia disso, fique sabendo).
O poeta afirmava que nas suas lides com as palavras, da mesma forma que nas lutas nos tatames, defrontava-se sempre com o mesmo problema: a necessidade de cultivar uma atenção plena, total, como diria o filósofo vietnamita Thich Nhat Hanh. Nada de parcialidades, sem essa de ficar com a alma pela metade.
Ora, para encontrar a palavra certa, para identificar o verso perfeito, é imprescindível se fazer todo presente diante da vida, e das musas, caso contrário, a alma não ressoa o canto da verdade.
E o mesmo ocorre, de modo similar, no combate marcial, onde uma piscadela pode levar o lutador a um encontro direto, rápido e certo com o chão. Não apenas isso. Se não procuramos nos fazer totalmente presentes, a beleza dos movimentos, o encanto sóbrio dos golpes, acaba reduzindo-se a pura brutalidade cega e desconexa.
Tais lições, encontradas tanto na leveza do judô quanto na aspereza das letras, são ensinamentos que deveriam ser levados tremendamente a sério por cada um de nós, mesmo que não sejamos um bardo de elevado calibre, nem um pelejador habilidoso porque, como todos sabemos, mas preferimos ignorar, a constância, a presença sólida diante da vida, é o que nos define como pessoa, como bem nos ensina o filósofo francês Louis Lavelle.
Infelizmente, não são poucas as vezes que ficamos largados, mas não pelados, diante de um televisor, supostamente assistindo algo e, ao mesmo tempo, com a tela de um telefone celular grudada nas ventas, supostamente vendo, lendo, ou acompanhando algo e, ainda por cima, estando com um aplicativo tocando uma sequência de músicas que, supostamente, estaríamos ouvindo, enquanto ficamos, supostamente, conversando com as pessoas que, supostamente, estão conosco no mesmo ambiente.
Tanto elas, quanto nós, ali estamos, fisicamente presentes, mas com a consciência em pedaços, enquanto a nossa personalidade é retalhada, gradualmente, pelos múltiplos canais de distração de nossa predileção.
Canais que, sorrateiramente, exigem apenas e tão somente um cadinho de cada vez da nossa atenção para, de pedacinho em pedacinho, destruí-la por completo, arrasando lentamente o que há de mais elevado em nossa personalidade.
Se levarmos tais considerações em conta, penso que as palavras do filósofo espanhol Miguel de Unamuno, nesse quesito, podem ser providenciais, quando no mesmo nos lembra que o esforço com que cada um de nós procura empreender em seus afazeres, por mais pequenos que sejam, que a forma como perseveramos no nosso modo de viver, sem nada por, sem nada tirar, acaba sendo a essência em ato de nós mesmos. E se fazemos tudo, de forma desatenta e com um inconfessável desamor, o que acabará sendo o tal do essencial em nossa alma? Pois é. Foi o que imaginei.
Dito de outra forma, se procuramos permanecer boa parte do nosso tempo aferrados em distrações, fugindo da necessidade de nos centrarmos na vida, não teremos um fio minimamente sólido de continuidade de nossas ações através do tempo e, se não tivermos essa linha, toda a trama que compõe a nossa vida terminará se desmanchando, tornando-se uma grande maçaroca, caótica, desprovida de propósito e, é claro, sem sentido algum.
Bem, diante do mundo atual, onde tudo à nossa volta, inclusive o sistema de ensino, nos convida a permanecermos dispersos, tais considerações deveriam ser levadas muitíssimo a sério, tendo em vista que praticamente todos, cada qual ao seu modo, tem lá os seus bengos favoritos de distração, para neles, e com eles, dissipar o seu minguado poder de atenção.
Uns mais, outros menos; uns mais sofisticados, outros, nem tanto, mas todos nós, sem exceção, de alguma forma dilapidamos da nossa capacidade de concentração.
De mais a mais, como nos ensina o professor Olavo de Carvalho, o centro da inteligência é a nossa capacidade de centrar-se. Sem ela, a inteligência esmorece e cai. E o dramático é que ela, a inteligência, é o único bem que, quanto mais se perde, menos falta se sente.
Enfim, na próxima tertúlia amistosa que tivermos, regada café ou não, se pintar esse assunto, se for possível, lembremos disso.
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