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Para que o brilho da aurora tenha sentido
Num dia qualquer do ano de 1871, no Hospital de Montreal, um estudante de medicina tomou em suas mãos um livro do historiador britânico Thomas Carlyle e, desta obra, algumas palavras causaram-lhe uma profunda impressão. No caso, seriam essas as palavras: “nossa preocupação principal não deve ser a de divisar aquilo que se acha encoberto na distância, mas de executar o que se apresenta claramente diante de nós”.
Bem, o jovem estudante, segundo as más línguas, veio a se tornar um grande médico e ele, já idoso, dizia que muito de sua carreira exitosa, e de sua vida bem vivida, devia-se ao impacto que essas palavras, do tinteiro de Carlyle, tiveram em sua alma.
E é curioso como nossa cumbuca funciona diante das obrigações nossas de cada dia. Todos nós temos lá um punhado de tarefas que foram confiadas, pela Providência, em nossas mãos, para serem executadas com zelo. Tarefas que, diga-se de passagem, não são nem um pouco complicadas e, por isso mesmo, acabam não tendo aquele glamour, nem aquele ar desafiador, aventureiro, divertido, como gostaríamos que tivesse.
Por essa razão que muitas e muitas vezes nós acabamos dando de ombros a todas elas e, sem querer querendo, terminamos por não executá-las, por considerá-las atividades de pouco valor, de importância duvidosa, indignas de nossa “excelsa pessoa”.
Ao fazermos isso, sem nos darmos conta, ao invés de abrirmos os portões da nossa alma para uma vida “épica”, repleta de significado e fecunda de sentido, acabamos por nos embrenhar numa barafunda de mesquinhez, futilidades e mediocridades mil e, tudo isso junto e misturado, indevidamente justificado em nome dos mais elevados ideias que palpitam no coração humano.
Dito de outro modo, o sujeito que diz estar fervendo de indignação frente às injustiças do mundo, muitas e muitas vezes não é capaz de lavar a louça do almoço, de ajudar a organizar a casa ou de simplesmente limpar o quintal. O mesmo caboclo que diz tremer de indignação frente aos abusos que são cometidos por políticos, empresários e criaturas similares, não é capaz de agir de forma minimamente gentil e amorosa para com sua esposa, filhos, amigos e colegas de trabalho.
A lista de tarefas que são desdenhadas por nós, por considerarmos de pequeno calibre, são uma enormidade, mas é nelas, justamente nelas, que iremos nos realizar plenamente como pessoa porque, como nos ensina Viktor E. Frankl, é nas pequenas obrigações que realmente podemos absorver plenamente o sentido da vida, porque apenas nós podemos realizá-las. Apenas nós e mais ninguém.
Por essa razão, o sentido da vida não pode jamais ser inventado por nós; ele, necessariamente, precisa ser encontrado por cada um de nós.
Ao realizarmos, de forma silente, as nossas obrigações de cada dia, estamos nos entregando por inteiro ao cumprimento de ações que, efetivamente, vão impactar a nossa vida e, consequentemente, a vida dos nossos semelhantes.
Aliás, como bem nos lembra o poeta e escritor britânico Robert Louis Stevenson, todos podem carregar os fardos que foram colocados sobre seus ombros, não importa o quão pesados eles sejam, até o cair da tarde; e, com a chegada do fim do dia, podemos olhar o crepúsculo do astro e rei e dizer, para nós mesmos, que fizemos tudo que podia ser feito, com todas as forças que temos, da melhor forma possível.
Ao afirmar isso não estamos dizendo que não podemos tremer de indignação diante das mazelas do mundo; o que afirmamos, em alto e bom tom, é que não devemos, jamais, usar a justa indignação como justificativa para fazermos pouco caso das obrigações concretas que temos que cumprir em nosso dia a dia.
Enfim, como nos ensina o poeta alemão Johann Goethe, se não sabemos exatamente o que queremos fazer, cumpramos zelosamente tudo aquilo que é do nosso dever. Tal cumprimento, num primeiro momento pode até não nos agradar, porém, com o tempo, a sua contínua e zelosa realização preencherá o vazio que muitas e muitas vezes tortura o nosso coração e turva a nossa consciência.
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