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A peça que eu assisti
A afirmação é a de que este é o fadário dos maridos: o eterno medo de a “sua” mulher ser arrebatada por outro homem e com ele jogar-se nos prazeres da carne, perdendo-se em súbita e descontrolada paixão. Creio que, se um dia esse foi o apanágio dos maridos, já não o é mais. Esse estado de sofreguidão com a possibilidade de o “seu” par atender a eventuais ímpetos de desejo sexual por “outro\a” faz parte dos males dos caídos e caídas em condição amorosa, homem ou mulher.
Não obstante essa angústia sempre pendente, parelhas se formam, saciam-se e depois cometem o “descuidado” de deixar a coisa arrefecer. Após algum tempo, o sexo vira rotina a ser cumprida, ou, às vezes, num restinho do que era bom, desafogo de vontade acumulada. Nesses casos, o interessado vai e se satisfaz, mas ao preço do pecado mais mortal nas convivências amorosas: aquela transa rápida que é quase uma masturbação, algo como uma tarefa, sem muito gosto e nenhuma dedicação.
O espetáculo teatral A Coleção (texto, Harold Pinter; direção, Esther Góes) trata de relacionamentos. De fato, cuida de muita coisa do comportamento humano, deixando as conclusões à imaginação acendida do\a expectador\a. Minha imaginação e eu vimos o seguinte: mulher casada viajou a um evento de moda; homem casado também foi. Bebem um pouco, cruzam olhares. A certa hora, alguém dá sinais de que se vai. A outra parte administra a “casualidade” de tomar o mesmo elevador.
A sensação de estar em um hotel, livre da vigilância que o casamento acarreta, é efusiva. Os instintos estão à flor da pele. É cedida a vez à porta do elevador. Os corpos se aproximam. Pode-se dizer que a iniciativa foi de parte a parte. O quarto haveria de ser o da mulher. Sexo luxurioso, inexaurível. O descanso revigorante que recomenda busca de mais prazer é quebrado pelo telefonema esperado. Um marido monitorando os acontecimentos. Os detalhes, mínimos, entregam que algo não está igual.
Em casa, o exercício inescapável da vocação marital: a cobrança do sutil embargo da voz. Algo havia acontecido. Aconteceu, não aconteceu; está bem, aconteceu. A mulher narrou o ocorrido. O marido quer detalhes, a mulher os dá em profusão. Cara de interrogada, satisfação de pecadora que tripudia sobre o desespero do interrogador. Essas coisas doidas, só um animal humano é capaz de cometer. E esse fazer ciumento, doentio, desencadeia outros, para que a sina de marido seja cumprida até o final.
Quem é ele? Há que saber, há que se medir, há que fazer com que esse outro saiba que ele sabe, há que deixar claro que percebeu tudo. Agora quer extrair o que esse outro homem tem para contar; quer cada local, cada palavra, cada situação. Pormenores: um jogo sádico e masoquista de exposição e purga. Os detalhes da perfídia humilham, doem, dão controle, excitam. Seja o que seja, o mergulho marital nas circunstâncias daquele quarto de hotel é vertiginoso. Passa vergonha, mas não se contém.
O outro nega fatos evidentes. O marido recusa qualquer versão que não coincida com a dele. Obriga esse homem que levou sua mulher ao adultério a narrar minúcias na frente do seu companheiro. Perde-se e retoma-se. Refreia ímpetos de violência, ou por sensatez, ou por gozo da vingança e da própria dor. Insiste. O outro admite e conta coisas a mais. Revolta, dor, rancor; prazer nas minudências. Enfim, há de se ir. O outro, de súbito, reverte a narrativa: tudo era mentira; inexplicável devaneio da mulher.
Surpresos, talvez decepcionados, todos se vão. O que fica são os restos de sentimentos extravasados pelos personagens, expostos a um limite que desconforta. Creio que a ninguém na plateia o assunto tenha sido novidade. Aquela trama nos toca e nos mostra nosso ridículo em insistir em um descabido controle do\a outro\a; exibe-nos o paradoxo que somos, querendo pormenores do que nos é intolerável; nos expõe a matéria emocional que nos compõe, menos elevada do que costumamos supor.
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