Política

Relatório da PF sobre desvios em creches atinge uma das vitrines de Nunes, que destaca fim das filas nas unidades

Investigação encontrou indícios de irregularidades em 112 de 152 estabelecimentos investigados, envolvendo R$ 14,4 milhões

Agência O Globo - 02/08/2024
Relatório da PF sobre desvios em creches atinge uma das vitrines de Nunes, que destaca fim das filas nas unidades
Ricardo NunesRelatório da PF sobre desvios em creches atinge uma das vitrines de Nunes, que destaca fim das filas nas unidades - Foto: Instagram - @prefeitoricardonunes

O inquérito da Polícia Federal que mira um suposto esquema de desvio de verbas nas creches administradas por Organizações Sociais (OSs) em São Paulo atinge indiretamente uma das vitrines do prefeito e candidato à reeleição Ricardo Nunes (MDB): a fila de creche zerada na capital, marca que só foi possível com a “terceirização” do ensino infantil para crianças de 0 a 3 anos para essas gestoras. A investigação encontrou indícios de irregularidades em 112 de 152 unidades investigadas, envolvendo R$ 14,4 milhões.

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A política de repassar a administração das creches às OSs foi criada em 2017 pelo então prefeito João Doria, à época no PSDB, e continuou na gestão seguinte (2018-2021), de Bruno Covas (PSDB), morto em 2021, de quem o atual prefeito era vice. As OSs se tornaram as responsáveis principalmente por alugar os prédios e gerir as creches. Hoje, das 2.500 unidades, 2.219 são geridas por OSs e 359 de forma direta pela prefeitura.

Em dezembro de 2020, Covas anunciou que a fila das creches havia sido zerada, após a criação de 91 mil vagas. O feito foi considerado um marco da gestão, já que São Paulo convivia há décadas com um déficit de vagas. A política foi mantida, e Nunes costuma exaltar a conquista do município.

Neste modelo, a prefeitura repassa verbas per capita às OSs, de acordo com o número de alunos matriculados — neste ano, o valor por criança varia de R$ 762 a R$ 1.154. Mas o quanto é gasto para a manutenção das creches virou alvo de investigações da PF.

Indícios

O inquérito mostra que os indícios de irregularidades vão desde falsificações de guias da Previdência Social até a emissão de notas frias de serviços e produtos que nunca foram prestados ou entregues. Em outra manobra, fornecedores contratados pelas OSs devolveriam parte do valor que recebiam para as contratantes.

A PF suspeita que o prefeito Ricardo Nunes, quando ainda era vereador (2013-2020), teria participado do esquema por meio da empresa de dedetização de sua família, mas o prefeito nega. Na terça-feira, a PF indiciou 116 pessoas e pediu a continuidade de investigações em relação a Nunes.

Ao todo, o inquérito estima que as entidades e empresas de fachada investigadas movimentaram cerca de R$ 1,5 bilhão entre 2016 e 2020. O caso envolveria escritórios de contabilidade e empresas de fachada especializadas em emitir notas frias, chamadas pela PF de “noteiras”.

As suspeitas de irregularidades começam em 2018, após a Controladoria-Geral do Município receber denúncias anônimas sobre possíveis fraudes na contribuição previdenciária. Além disso, um cruzamento da CGM mostrou conexões de donos de escritórios de contabilidade com empresas fornecedoras de serviços para as OSs. Esse elo permitiu, apontam as investigações, que OSs fingissem contratar serviços, e a prestação de contas ocorria por meio de notas frias. As organizações transferiam dinheiro para as “noteiras”, que encaminhavam o valor para os fornecedores. Depois, parte desses valores eram enviados de volta para as OSs.

Nesse ponto da investigação, surgiram indícios do suposto envolvimento de Nunes que, diz o inquérito, teria relações com a Associação Amiga da Criança e do Adolescente (Acria), cuja presidente é Elaine Targino da Silva. Elaine foi funcionária da Nikkey Serviços S/S, empresa de controle de pragas da família de Nunes.

A PF identificou um repasse da empresa Francisca Jaqueline Oliveira Braz Eireli, supostamente uma “noteira”, de R$ 11.590 para a conta de Nunes, por meio de dois cheques, em 27 de fevereiro de 2018. No mesmo dia, diz a PF, foi feita uma remessa de R$ 20 mil da mesma empresa para a Nikkey. Segundo a polícia, “é suspeita essa relação do então vereador (...) com uma das principais empresas atuantes do esquema criminoso”.

Segundo Targino, os valores que a Acria recebeu da empresa, total de R$ 1,3 milhão, são “doações”, mas ela não apresentou comprovantes.

Já Nunes, quando ouvido pela PF, afirmou que a Nikkey prestou serviços de dedetização para a Acria. Na quarta-feira, o prefeito negou envolvimento com o esquema, apontou motivações políticas por conta de sua campanha à reeleição. Em nota, sua assessoria disse ainda que ele prestou “todos os esclarecimentos no processo” e não houve qualquer acusação. A Acria afirmou que a Nikkey prestou os serviços contratados. A defesa dos demais citadas não foi localizada. A da Francisca Jaqueline Eireli não quis se manifestar.

Entenda o suposto esquema

Creches conveniadas recebem repasses mensais da prefeitura que variam de acordo com o número de alunos matriculados. Modelo permite atender crianças que a gestão municipal não conseguiria apenas com unidades próprias.

Todo mês, as Organizações Sociais que gerem as creches prestam contas à prefeitura, elencando despesas com recursos humanos, manutenção, alimentação e materiais pedagógicos, de limpeza e de escritório.

Segundo a PF, as OSs investigadas emitiam notas fiscais falsas de serviços e produtos que nunca foram de fato prestados ou comprados.

Parte do dinheiro pago para essas fornecedoras voltava para as próprias entidades contratantes.

As notas fiscais eram emitidas por empresas “noteiras”, cujos sócios têm ligações com as OSs ou com os fornecedores.

A Nikkey Serviços, empresa da família de Ricardo Nunes, prestou serviços para algumas creches conveniadas. A PF aponta suspeitas sobre a real prestação de serviços. Nunes diz que eles foram regularmente prestados e nega irregularidade.

A PF ainda aponta que as OSs falsificaram guias de recolhimento da Previdência, que não foram pagas como devido.