Política

CIDADES HEREDITÁRIAS: AS FAMÍLIAS NO PODER HÁ DÉCADAS E SÉCULOS — E QUE TENTARÃO CONTINUAR ASSIM

Herança do colonialismo mantém clãs no poder Brasil afora geração após geração

Agência O Globo - 18/08/2024
CIDADES HEREDITÁRIAS: AS FAMÍLIAS NO PODER HÁ DÉCADAS E SÉCULOS — E QUE TENTARÃO CONTINUAR ASSIM

Pouco após a chegada dos portugueses, a Coroa decidiu repartir o território brasileiro em 15 capitanias hereditárias, cuja posse, por determinação do rei, era transmitida de pai para filho. Passados quase 600 anos, o panorama não mudou tanto assim em municípios país afora onde o poder vem sendo mantido nas mãos da mesma família, geração a geração, por décadas ou até séculos — um domínio que, diante da pujança de cada clã na política local, pode se estender nas eleições de outubro.

É o caso de Tauá, no Ceará, onde cinco gerações dos Gomes de Aguiar vêm se revezando na prefeitura. Ou de Maringá, no Paraná, onde Silvio Barros II (PP) tentará voltar ao posto que já foi do pai, do irmão e dele próprio no passado — conheça essas e outras histórias nesta reportagem.

Para especialistas, as cidades hereditárias 2.0 são, justamente, um reflexo da formação colonialista do Brasil. Um fenômeno que a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz chama de “familismo”, originado nas elites rurais e, mais tarde, transpassado às urbanas.

DO INTENDENTE GOMES FREITAS AO ‘ORÇAMENTO SECRETO’

Quando a foto da prefeita Patrícia Gomes de Aguiar aparecer nas urnas de Tauá, cidade cearense a 340 quilômetros de Fortaleza, no dia 3 de outubro, será a quinta vez em que sua imagem será mostrada na tela para este mesmo cargo. Antes da atual gestão, ela já havia ocupado o cargo de 2001 a 2008 (dois mandatos) e de 2013 a 2016.

Mas Patrícia não é a única Gomes de Aguiar a ilustrar os santinhos que serão espalhados pela cidade. Ela faz parte de uma família que administra a localidade no sertão cearense há pelo menos um século.

Ainda antes de ser considerado um município, Tauá teve como intendente o fazendeiro Domingos Gomes Freitas, entre os anos de 1919 a 1926. Dez anos depois, com a cidade já emancipada, foi a vez de seu genro, Odilon Silveira Aguiar, comandar o paço municipal, entre 1935 e 1936. Ele era casado com Maria Domingas Gomes de Aguiar.

Filho do casal, Domingos Gomes de Aguiar comandou a cidade de 1967 a 1971 e de 1973 a 1976, enquanto o neto, Marco Aurélio de Oliveira Aguiar, esteve no poder municipal entre 1995 e 1996.

Já o outro neto, Domingos Gomes de Aguiar Filho, conhecido apenas por Domingos Filho, nunca comandou a prefeitura, mas manteve a tradição política ao presidir a Assembleia Legislativa cearense e ser eleito vice-governador do estado. Ele é casado com Patrícia, candidata nestas eleições, e é o atual comandante do PSD cearense.

A história recente dos Gomes de Aguiar é marcada pela relação conturbada com outro clã cearense, dos Ferreira Gomes, de Sobral (CE), que tem os irmãos Ciro e Cid Gomes como principais expoentes. Domingos Filho foi vice de Cid no governo do estado, mas rompeu com o aliado ao fim da gestão.

Após cinco gerações de prefeitos em Tauá, a família agora tenta expandir horizontes e colocar um representante na prefeitura da capital. Na eleição em Fortaleza, o atual governante José Sarto (PDT), aliado de Ciro, irá enfrentar Evandro Leitão (PT), que terá como vice a deputada estadual Gabriella Aguiar (PSD), filha de Domingos Filho.

A família também tem um representante em Brasília: o deputado federal Domingos Neto (PSD-CE), irmão de Gabriella e filho de Domingos e Patrícia. O parlamentar foi o relator do orçamento de 2020 no Congresso. Na época, destinou a Tauá, administrada por sua mãe, R$ 146 milhões do chamado “orçamento secreto”. O município de pouco mais de 60 mil habitantes tornou-se, assim, o que mais recebeu dinheiro com esse tipo de emenda naquele ano.

NAS MÃOS DOS COELHO DESDE AS CAPITANIAS

A árvore genealógica dos Coelho é tão vasta que os galhos de uma mangueira seriam insuficientes para abrigar a poderosa família de Petrolina, em Pernambuco. A história do clã, segundo pesquisadores, remete ao período da colonização, quando o Brasil ainda era dividido nas capitanias.

Em uma tese de doutorado na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), o professor João Morais de Sousa conta que “o primeiro Coelho de quem se teve notícia na região foi o capitão Valério Coelho Rodrigues”, português apontado como “aristocrata, empreendedor e aventureiro” que chegou por volta de 1745 e comprou de fidalgos uma enorme faixa de terra, desmembrada em 20 fazendas.

Valério Coelho teve 16 filhos, oito homens e oito mulheres. Da linhagem, veio um bisneto chamado Clementino de Souza Coelho, conhecido como Coronel Quelê, que sempre manteve influência política na região e chegou a ocupar o cargo de subprefeito de Petrolina duas vezes, em 1913 e em 1927.

Dentre os filhos do coronel, está o médico Nilo Coelho, que foi deputado estadual e federal e acabou nomeado governador de Pernambuco pelo então presidente Castelo Branco, sob a ditadura militar, em 1967.

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Após Nilo, outros nomes da família se firmaram na política local e até nacionalmente, como seu sobrinho, o ex-senador Fernando Bezerra Coelho, que foi ministro do governo de Dilma Rousseff. Miguel Coelho, filho de Fernando, tornou-se prefeito em 2016 e reelegeu-se em 2020, deixando o cargo para disputar — e perder — o governo estadual em 2022.

Hoje, o atual prefeito de Petrolina é Simão Durando Filho, ex-vice de Miguel Coelho. Embora a poderosa família não esteja na cabeça de chapa, o empresário Ricardo Coelho, primo de segundo grau de Fernando, é o aspirante a vice.

OS ‘VON DER LEY’ DA OCUPAÇÃO HOLANDESA VIRARAM WANDERLEY

O poder do clã que domina a cidade paraibana de Patos, a 303 quilômetros de João Pessoa, tem origem a um oceano de distância dali. O município de 103 mil habitantes é administrado há séculos por descendentes da família Wanderley, oriunda da época da ocupação do Nordeste por tropas holandesas no século XVII.

Entre os descendentes do primeiro “Von Der Ley” (abrasileirado para Wanderley), está o deputado Hugo Motta, líder do Republicanos na Câmara. Embora seja da mesma parentela, o parlamentar não utiliza o sobrenome na urna. Ele é filho do atual prefeito de Patos, Nabor Wanderley Filho (Republicanos), que disputa a reeleição neste ano.

O primeiro prefeito de Patos foi Constantino Dantas de Góis, em 1895. Apesar de não carregar o sobrenome Wanderley, ele era da família, segundo pesquisa feita por Darcy Wanderley, que faz parte de um braço familiar que não entrou para a política.

— Enquanto parte da minha família permaneceu sendo de agricultores, outra parte passou a ter acesso a cursos, indicações políticas, e então viraram prefeitos, médicos, donos de cartórios, juízes — enumera.

Nas décadas seguintes, outros sete representantes da família ocuparam o cargo mais alto do executivo municipal: Clóvis Sátyro e Sousa (1930), Darcílio Wanderley de Nobrega (1950-1955), Nabor Wanderley da Nóbrega (1955-1959), que é avô de Hugo, Dinaldo Medeiros Wanderley (1997-2004), Nabor Wanderley da Nóbrega Filho (2005-2012) e Dinaldo Medeiros Wanderley Filho (2017-2018).

Mas Hugo Motta não carrega o sangue político apenas dos Wanderley. A família da mãe do deputado, de sobrenome Motta, também tem um vasto histórico de poder na cidade. A avó do parlamentar, Francisca Motta, foi prefeita de Patos em duas ocasiões, de 1993 a 1996 e de 2013 a 2016. Ela, contudo, não chegou a completar o mandato, pois foi afastada em meio a suspeitas de superfaturamentos em obras no município. A ex-prefeita, hoje deputada estadual, foi absolvida no caso em 2021.

RUSGAS ENTRE OS ALBUQUERQUE GERAM DISPUTA ENTRE IRMÃOS

Enquanto em Tauá os Gomes de Aguiar tentam expandir sua influência para a capital, em Massapê (CE), a 255 quilômetros de Fortaleza, os Albuquerque convivem com uma crise política que colocou irmãos em lados opostos nas eleições deste ano.

A família descende de João Ferreira Adeodato, primeiro prefeito a comandar a localidade, de 1915 até 1918, quando Massapê ganhou o status de cidade. Nas décadas seguintes, filho, neto, bisneto e tataranetos de Adeodato se revezaram no comando do município.

A nova geração dos Albuquerques, contudo, levou as desavenças familiares para a política e estarão em lados opostos nas eleições deste ano. A atual prefeita é Aline Albuquerque (Republicanos), que tentará a reeleição à revelia do irmão, o deputado federal Antonio José Albuquerque (PP-CE), conhecido como AJ Albuquerque. Ele também comandou o município entre 2016 e 2018 e apoiará um rival de Aline na disputa de outubro.

Na briga dos irmãos, o pai do casal, o deputado estadual Zezinho Albuquerque (PP-CE), tomou o lado da filha. Ele é o atual secretário de Cidades do governo do Ceará e foi presidente da Assembleia Legislativa cearense de 2013 a 2016.

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Em outro sinal de desunião envolvendo as eleições deste ano, o irmão deputado, AJ Albuquerque, que também é presidente do PP no Ceará, destituiu o próprio pai da presidência do partido em Fortaleza.

A decisão se deu em meio ao apoio do PP ao candidato do PT a prefeito da capital cearense, Evandro Leitão. AJ é a favor da aliança, mas seu pai, mesmo sendo secretário do governo estadual, que também é do PT, não havia garantido a entrada na coligação.

Essa, porém, não é a primeira vez que a família se dividiu numa disputa eleitoral. Em 2020, Aline concorreu contra o próprio tio, Jacques Albuquerque, irmão de Zezinho, que na época comandava o município e tentava a reeleição. O racha, contudo, não impediu que a prefeitura continuasse nas mãos dos Albuquerque até hoje.

DINASTIA ‘PÉ VERMELHA’ DOS BARROS AGORA MIRA TAMBÉM A CAPITAL PARANAENSE

Criada na década de 1950 durante a expansão da produção de café no país, Maringá, a 425 quilômetros de Curitiba, no Paraná, não havia completado sequer duas décadas quando foi comandada, pela primeira vez, por um integrante da família Barros.

Silvio Magalhães Barros foi o quinto prefeito do município, em 1973, depois de um mandato como vereador. Depois dele, dois de seus filhos, Ricardo Barros e Silvio Magalhães Barros II, se revezaram na administração municipal e criaram uma dinastia “pé vermelha” — alcunha dos nascidos no norte paranaense.

Ricardo foi o primeiro a seguir a vocação política do pai e se eleger prefeito, em 1989. Depois disso, seu irmão, Silvio II, foi gestor por dois mandatos consecutivos, de 2005 a 2012. Neste ano, Silvio II tentará um terceiro mandato após uma surpreendente derrota em 2016, quando perdeu a eleição para seu ex-chefe de gabinete, Ulisses Maia (PSD).

Dos dois irmãos, foi Ricardo Barros quem alçou voos mais altos e se tornou um dos principais nomes do Centrão em Brasília, chegando a comandar o Ministério da Saúde na gestão de Michel Temer. Em seu sétimo mandato como deputado federal, atualmente está licenciado da Câmara e ocupa o posto de secretário estadual de Indústria e Comércio do Paraná.

A vocação política da família foi mantida por sua mulher, Cida Borghetti, e sua filha, Maria Victoria Borghetti Barros. Cida foi vice-governadora e depois governadora do Paraná, enquanto Maria Victoria é deputada estadual e tentará neste ano ser eleita prefeita da capital, Curitiba.

Mesmo com tantos Barros em cargos de poder, Ricardo diz não considerar que seus parentes representem uma “dinastia política”. São, na sua visão, tão somente “uma família que escolheu a missão de servir”.

— Não tem concentração de poder. Quem elege é o povo. A gente não ganha mandato, não é hereditário. O que nós temos é vocação de servir — afirmou o deputado federal.