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Análise: 5 anos após onda antineoliberal, Chile continua um país desigual e vê direita fortalecida

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam por que os protestos que varreram o Chile em 2019 fracassaram em seus objetivos de tornar o país menos desigual e de retirar das mãos da iniciativa privada áreas críticas como sa

17/12/2024
Análise: 5 anos após onda antineoliberal, Chile continua um país desigual e vê direita fortalecida
Foto: © AP Photo / Esteban Felix

Em 2019, uma onda de protestos eclodiu no Chile, com marchas contra o modelo neoliberal vigente no país. O episódio ficou marcado como estallido social (explosão social, em tradução livre).

Inicialmente organizados pelo movimento estudantil, tendo como estopim um aumento nas tarifas do transporte público, os atos foram conquistando apoio de outros movimentos. As principais demandas eram mudanças no sistema de aposentadoria, o estabelecimento da educação pública, uma vez que no Chile o ensino é privado, e medidas de combate à desigualdade.

Os protestos foram brutalmente reprimidos pela administração do então presidente, o direitista Sebastián Piñera, deixando um rastro de 34 mortos e mais de 3 mil feridos, dos quais 347 perderam parcial ou totalmente a visão.

Hoje, cinco anos após o estallido social, o Chile é governado por um presidente de esquerda, Gabriel Boric, mas com a população frustrada quanto aos resultados dos protestos. Segundo o Centro de Estudos Públicos, 55% da população dizia apoiar as manifestações em 2019; hoje esse percentual é de apenas 23%. Ademais, foi observado um fortalecimento da direita nos últimos anos.

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam o que a jornada de protestos trouxe como resultado para o Chile cinco anos depois.

Victor Farinelli, chileno e jornalista do portal Opera Mundi, afirma que 18 milhões de chilenos, ou seja, quase toda a população do país, têm a sensação de que a jornada de protestos não resultou em nada e que os mesmos problemas seguem vigentes.

"Aquilo foi um grande momento de esperança de que as coisas fossem mudar. Porque realmente foi um movimento que mobilizou muita gente. Chegou a ter milhões de pessoas ali no centro de Santiago, e em outras cidades também houve manifestações. […] Aquilo mobilizou todo o país, e infelizmente, com o tempo, aquele afã foi perdendo força. A pandemia também teve alguma responsabilidade em desmobilizar as pessoas, porque no ano seguinte, em que todo mundo estava na rua, de repente todo mundo teve que entrar em casa […]. Tudo isso levou o Chile a, cinco anos depois, estar em uma situação talvez muito parecida com a que tinha antes daquela revolta", afirma.

Para Farinelli, o principal problema do Chile segue sendo o neoliberalismo. Ele destaca que o estallido social tinha demandas claramente antineoliberais, as principais pautadas na distribuição de renda e no sistema previdenciário chileno, que é totalmente administrado por empresas privadas. Segundo ele, esses elementos constituem "a grande razão do endividamento e do empobrecimento das classes trabalhadoras".

"E quando se criou a assembleia constituinte, na primeira constituinte que foi eleita em 2021, a grande maioria das pessoas que foram eleitas eram pessoas ligadas a movimentos que defendiam o fim daquele sistema — aquele não, desse sistema, porque ele continua vigente […]. Aquela constituinte fracassou; fez um ótimo texto, mas que acabou sendo rejeitado no plebiscito de 2022."

Ele avalia que a atual Constituição do Chile, elaborada durante a ditadura de Augusto Pinochet (1974–1990), tem muitos problemas "e impede, por exemplo, o investimento público e a própria administração pública de muitas coisas", pois tem uma cláusula que determina como inconstitucional a atuação do Estado em algumas áreas, como a Previdência.

"E outras iniciativas, várias, também não vão para frente por causa de cláusulas como essa. Então obviamente que, se o Chile conseguisse uma Constituição nova que derrubasse principalmente essas regras que impedem o Estado de investir e de atuar em certos setores, abriria muitas possibilidades para que as coisas começassem a mudar", afirma.

Questionado sobre as expectativas para as eleições presidenciais de 2025 no país, Farinelli destaca que qualquer um que se apresente como sucessor de Boric, já que não há reeleição no Chile, terá de lidar com uma gestão que atualmente é bastante mal avaliada.

"É preciso ter um candidato muito forte para que possa conseguir manter essa coalizão no poder. O nome que muita gente quer que dispute essa eleição é o da Michelle Bachelet, que já foi presidente em dois mandatos, e ela, sim, teria muita força. Ela é uma pessoa muito querida. A gente podia comparar a força política dela com a força política do Lula no Brasil. Se ela voltar, ela tem essa capacidade de juntar setores a favor dela."

Porém ele afirma que tudo indica que não está nos planos de Bachelet disputar as eleições, pois a mídia chilena especula há tempos que ela pretende disputar um cargo nas Nações Unidas.

"A equipe que trabalha para ela busca colocar o nome dela como candidata a secretária-geral, já que a ONU nunca teve uma secretária-geral mulher. E também há tempos que não tem um secretário-geral da América Latina, ou das Américas em geral. Então ela seria uma candidata muito forte para substituir o António Guterres."

Ademais, o movimento estudantil que liderou os protestos em 2019 hoje se encontra rachado.

"Hoje em dia a extrema-direita conseguiu ganhar alguns espaços dentro dessas organizações, então não é tão simples como foi em 2019."

Temas sensíveis assustaram conservadores

Miriam Gomes Saraiva, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que a desigualdade é hoje o maior problema do Chile. Segundo ela, o modelo liberal estabelecido na ditadura Pinochet debilitou serviços sociais, colocando saúde, educação e Previdência nas mãos da iniciativa privada.

"Acabou a ditadura, mas o Estado Democrático que veio depois não foi capaz de modificar essa situação […]. E, claro, passou um tempo [da década] de 1980 até agora, você tem as primeiras pessoas que já começam a se aposentar depois da instalação dessa Constituição, e que começam a ter muitas perdas na aposentadoria, que foi uma das áreas de sofrimento. Muita deficiência na área de saúde e muita deficiência na área de educação", explica.

Ela aponta que as condições precárias de aposentadoria são o que levam o Chile a ter um índice de suicídio entre pessoas da terceira idade muito acima da média mundial.

"No Chile não existe aposentadoria pública. A pessoa vai pagando a capitalização durante a sua vida laboral e depois se aposenta. Mas isso fica na dependência de aplicações financeiras do banco ao qual a pessoa se vincula. Não tem índices mais congelados, como, por exemplo, o salário mínimo, salário mínimo e meio, qualquer coisa assim. Havia muitas perdas depois da aposentadoria. Os ganhos caíam enormemente. E aí, sim, muitas pessoas não conseguiam bancar os próprios gastos e acabavam se matando."

Saraiva afirma que a assembleia constituinte criada na esteira dos protestos de 2019 fracassou por conta da falta de canal de diálogo entre os membros eleitos e porque, para além das questões de saúde, educação e Previdência, propôs uma Constituição abordando temas que são controversos para a maioria da população chilena.

"Foi uma Constituição bastante progressista, que mudava as regras da Constituição da ditadura, mas fazia algumas mudanças também no sentido de questões de gênero, em questões que no Chile são um problema muito forte — questões das etnias, das comunidades originárias —, que ocupam um espaço relativamente significativo no Chile."

Segundo ela, quando ocorre um movimento forte como o estallido social, uma maioria calada passa desapercebida, pois fica em casa acompanhando a situação.

"Quando saiu a Constituição, com esse perfil bastante progressista e bem diferente do que era a Constituição anterior, essa maioria silenciosa, em parte, se assustou. E a gente vê também que os setores conservadores muitas vezes não são muito barulhentos, mas na hora de dar um voto negativo ou, o que muitos fizeram no caso, não deram votos, se abstiveram, não foram votar, essa Constituição foi reprovada."

Ela acrescenta que se o próximo presidente eleito em 2025 for o principal candidato da direita, José Antonio Kast, que, segundo ela, é pinochetista e pró-ditadura, provavelmente não vai querer mexer na Constituição atual. Mas se a esquerda ou a centro-esquerda conseguir eleger um novo presidente, é possível que ele queira mexer na Constituição.

"É possível que queira mexer, mas vai fazer certamente uma análise, uma avaliação para ver se não vai ser um furo a mais. Para mexer na Constituição tem que ter certeza de que ela vai ser aprovada", afirma.

Por Sputinik Brasil